Clarissa Ferreira

Clarissa é violinista, cancionista e etnomusicóloga. Integrante da nova cena da música gaúcha, traz narrativas que repensam a história e recriam a música tradicional do Rio Grande do Sul por uma perspectiva feminista e contemporânea. Em 2024 lançou seu primeiro álbum intitulado LaVaca, recebendo prêmios de Melhor Álbum de Música Regional, Melhor Arranjo, Melhor Compositora e Melhor Intérprete no Prêmio Açorianos do Rio Grande do Sul. Seu trabalho musical está conectado a suas pesquisas em etnomusicologia e ao livro de artigos críticos de sua autoria Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul, Editora Coragem, 2022.

Suas músicas e poemas abordam como temas a degradação do bioma pampa e um olhar para as fêmeas que nela habitam. Sua música estabelece diálogos através do território latino-americano popular e tradicional. As faixas apresentam linguagens vivas e diversas, misturando ritmos brasileiros, argentinos e uruguaios, como o candombe, a milonga, o samba e a chacarera.

Seus trabalhos foram apresentados em festivais como o La Serena Festival de la Canción, no Uruguai (2020/ 2024), Festival Pira Rural (2023), Festival Acid Rock, Sofá na Rua e Festival Chisme (2024), Festival Akará e Festival Morrostock (2025).

Clarissa, em que medida seu recente álbum La Vaca dialoga com a tradição da música gaúcha? As canções são bastante contemporâneas, é fato. Mas há um namoro com gêneros regionais. Como essa tradição atravessa seu trabalho?

O conceito deste meu primeiro álbum surge da necessidade e busca por ressignificar a cultura gaúcha tradicional, trazendo uma visão da contemporaneidade. Por ter atuado durante bastante tempo nos ambientes da música Tradicionalista e Nativista, e ter pesquisado a música gaúcha em minhas pesquisas de mestrado e doutorado, comecei a elaborar reflexões sobre a construção dessa identidade, e vendo como muitas vezes nessas construções simbólicas se negligenciou a representatividade de outras visões, o apagamento de histórias, como a das mulheres, e de outras culturas. Para o álbum buscamos cruzar essas sonoridades regionalizadas sul-americanas, através de gêneros musicais que são comuns a nós que apreciamos e valorizamos essa platinidade, essa cultura comum ao Rio Grande do Sul, Uruguai e Argentina, apresentando ritmos como o candombe, a milonga, a chacarera. As canções foram nascendo em meio a esse processo criativo-reflexivo. A partir daí a estética sonora do disco foi se desenvolvendo com nossas referências de sonoridades contemporâneas e híbridas, trazendo beats, o sitar indiano, os tambores, o quarteto de cordas, juntamente com os arranjos de violões de uma estética mais tradicional que perpassam todo o disco.

Você tem feito alguns vídeos nas redes cutucando algumas feridas com muito humor. Machismo, sexismo, misoginia, descaso político… muita coisa filtrada ali. Como é a recepção desses vídeos em casa? Há alguma repulsa? Há críticas explícitas? E como você lida com isso?

Como já venho construindo essa visão contra hegemônica e crítica do gauchismo há bastante tempo, sinto que tenho inclusive inspirado outras pessoas a criar mais livremente com esses elementos artísticos, históricos e simbólicos. Meu público traz bastante esse perfil de pessoas que não se sentiram muitas vezes identificadas com a forma que é tratada a questão de tradição no Rio Grande do Sul, e com todo o aparato ideológico que muitas vezes representa, até por uma apropriação recente de segmentos conservadores. Começo a compor pensando em como a canção é uma ferramenta na nossa cultura contemporânea, já trazendo essa crítica, como no single Manifesto Líquido que eu canto: “eu que me renda desse destino de prenda, contemporânea gueixa gaúcha dar-se feito oferenda”, prenda é como chamam a mulher no contexto do Tradicionalismo. Com o passar do texto e uma fluidez maior na escrita e na composição também, comecei a compor mais espontaneamente e com a parceria da Ana Clara Matielo, com quem tenho o projeto em dupla que se chama Clara Clarissa, foi fluindo cada vez mais para o humor. Temos trazido a crítica, assim como muitas mulheres hoje estão fazendo usando o humor e a música para desenvolverem suas narrativas. Sobre críticas um episódio foi marcante, em um conteúdo sobre uma paródia de uma música gaúcha bastante conhecida onde tivemos críticas bem direcionadas impulsionadas por um recorte de um repórter tradicionalista sensacionalista que ligeiramente concluímos que era uma tentativa de silenciamento, porque a nossa crítica com essa paródia, além de falar sobre a liberdade sexual feminina, foi também mostrar a grande contradição desse mercado que é o gauchismo hoje em dia, que manipula as narrativas, se aproveita das ondas midiáticas, é conservador à música periférica, mas na menor possibilidade se aproxima de forma interesseira. Nessa música fizemos uma paródia cantando como se fosse uma letra de funk, pois a cantora pop Luisa Sonza havia participado do evento sem suas vestes de performance, pois em evento anterior havia recebido muitas críticas, o que reflete o machismo implícito e repressor dos que se acham detentores da tradição gaúcha. Lido com isso sabendo que se está chegando e causando o debate e a reflexão, então meu trabalho está no caminho certo, porque as coisas não podem continuar do jeito que estão, e é minha função como artista e como pesquisadora.

Seu livro “Gauchismo Líquido” toca nessas questões acima. E vai além. De certa forma ele é um desdobramento da “Estética do Frio” de Vitor Ramil? Você vê pontos de intersecção entre seu livro e o manifesto escrito há mais de 20 anos?

O meu primeiro livro Gauchismo Líquido foi sendo escrito enquanto eu fazia a pesquisa de mestrado e doutorado em etnomusicologia, escrevi esses textos menos acadêmicos em formato de blog e posteriormente tive o convite da Editora Coragem de torná-lo livro. Nesses textos, em formato de ensaio ou artigo, conversando com as mais diversas fontes bibliográficas sobre o tema, vou discorrendo sobre como a “cultura gaúcha” foi construída. Conversa bastante com a obra de Vitor, principalmente porque os dois trabalhos tem como intersecção pensarmos como o Rio Grande do Sul é visto, e como essas estruturas sócio políticas moldaram a forma como nos enxergamos como gaúchos. A própria existência e obra de Vitor sinto como convites ao diálogo e a se aprofundar na complexidade dessa teia cultural.

Falando em Vitor Ramil, ele é uma influência para os músicos da sua geração? O que ele representa de fato? Qual trabalho dele você indicaria para alguém que não o conheça?

Vitor Ramil é uma influência para nossa geração, acho que porque sua arte inaugurou um outro momento nas artes do sul, na forma poética e expressiva, na maneira como ele reordenou os elementos e os filtrou. Além disso, é muito generoso com as novas gerações, foi muito solícito ao meu convite quando o convidei para cantar Pampa comigo no meu álbum LaVaca. Indicaria para quem não conhece a dobradinha livro Estética do Frio e o álbum Ramilonga, pois acho que sintetiza esse conceito que ele desenvolve com muitas matizes nos demais trabalhos.

E há previsão de um novo álbum? Pode falar um pouco sobre seus novos projetos?

Em julho vou lançar EP da nossa dupla Clara Clarissa, que traz uma proposta um pouco diferente do LaVaca, mais para o gênero musical latin pop, cantando em duetos de vozes e arranjos minimalistas de violão, violino e bombo leguero. Esse trabalho também dialoga sobre esse sul a partir de uma lente dos afetos, das relações. O EP se chama Amiga, foi todo gravado por nós, produzido pelo Lucas Ramos, masterizado pelo Marcos Abreu, e com cinco composições nossas, alguns poemas musicados de Ana Martins Marques e Juliana Flor. Sigo atuando como violinista em diversos projetos, lançando esse ano alguns trabalhos com o quarteto de cordas que reuni que se chama Sucinta Orquestra, e também sigo dando mais atenção à minha criação instrumental, pois há um desejo de realizar um trabalho instrumental ao violino quando for possível. Sigo compondo e lançando canções, pretendo lançar alguns singles esse ano, e já comecei a pensar no conceito também de um novo trabalho de canções que sigam as reflexões sobre essa nossa velha pampa gaúcha.