Festival Radioca
Brasis luminosos pulsam em Salvador
Leonardo Lichote
(fotos de Rafael Passos)
O Festival Radioca chega à sua 6ª edição provando que a música brasileira segue viva e potente, apesar das perdasda última semana. Enquanto o país chorava as mortes de Gal e Rolando Boldrin e se emocionava com a despedida de Milton Nascimento, o palco do Radioca irradiava calor e alegria.
Dia 1
“A sensação que eu tenho é que a gente trouxe o destino de volta”, disse Otto a certa altura do show que encerrou o primeiro dia do Festival Radioca, realizado este fim de semana (12 e 13 de novembro), em Salvador. “A gente”, na fala do pernambucano se dirigindo a uma plateia baiana, é o Nordeste brasileiro. E trazer “o destino de volta” é uma rica e bela formulação sócio-filosófica para se referir à importância da região nas eleições presidenciais que, mais do que eleger Lula, retiraram a extrema-direita do poder — na reflexão do cantor, entregando o Brasil novamente a seu destino, a seu papel no mundo, ao que a História reserva pra ele a despeito de acidentes no percurso.
Desde a primeira atração do sábado, a cantora Ana Barroso, baiana de Vitória da Conquista, a atmosfera apontava exatamente para a celebração do Nordeste — num momento histórico de orgulho especialmente exaltado, numa cidade onde praticamente todos os isopores de ambulantes têm estrelas do PT adesivadas. Com o mapa da região estampado em verde nas costas de sua roupa branca, a artista trafegou em meio a cocos e sambas, com a elegância da formação que incluía flauta, clarinete e clarone. Entre canções próprias e de compositores como Elomar, ela se remeteu à tradição musical da alegria, do drama e do lirismo que se espalha pelo terreno vasto e multifacetado da região e que, de alguma forma, nos desenha um mapa nordestino em si.
Com raízes no Vale do São Francisco, entre a Bahia e Pernambuco, a Trupe Poligodélica lançou novas cores e texturas ao mapa. Com os pés firmados em outras tradições da região, sobretudo a psicodelia pernambucana e as muitas variações da música ultrapopular brasileira que pode ser agrupada na classificação de “brega”, o grupo apresentou boas canções e uma performance consistente, apoiada em seus dois álbuns, “A transmutação do eco em lenda” (2020) e “Oroboros” (2021), além de terem apresentado o recém-lançado e divertido single “Portelinha”.
Originária de Natal, a banda Luísa e os Alquimistas levou ao palco do Radioca sua radicalização de fusão entre o indie eletrônico e diversos gêneros populares periféricos contemporâneos, como cumbia e tecnobrega. A presença do acordeon — instrumento onipresente na sonoridade mais ouvida no Brasil hoje, do sertanejo à pisadinha — como elemento central (cênico e musical) do show diz muito das intenções e das realizações do grupo. E a cantora Luísa Guedes carrega — num misto de sinceridade e pastiche que explode mil sentidos estéticos e artísticos — o carisma das cantoras raba-ostentação como Luísa Sonza, Anitta e Rosalía.
É importante notar que a afirmação do Nordeste na primeira noite do Radioca não pode ser desvinculada da afirmação da mulher. A pernambucana Alessandra Leão (outra atração feminina, numa formação instrumental que trazia outras duas mulheres) reafirmou isso de maneira inequívoca ao celebrar figuras como Lia de Itamaracá e Gal Costa (lembrada por muitos artistas ao longo da noite) em seu show. Giras, cirandas e cocos ganhavam potência com a bateria e percussão (eletrônica e acústica) e os timbres dos sintetizadores. Uma proposta musical e de palco que explora mais o diálogo do que o choque entre as tradições que se encontravam ali.
Outros encontros e outros diálogos se materializam nos tambores e panos do Ilê Aiyê, a atração seguinte. O bloco afro baiano se posta no palco com a elegância e com a autoridade de quem está em casa — e numa casa negra, na qual a plateia de diferentes graus de branquitude e negritude, é visita bem recebida. Em paralelo à musicalidade riquíssima dos tambores, há uma afirmação dos corpos negros — o corpo que dança, o corpo que batuca. As letras espelham a manifestação física daquele Nordeste negro: “Se você está a fim de ofender/ É só chamá-lo de moreno pode crer/ É desrespeito à raça, é alienação/ Aqui no Ilê Aiyê a preferência é ser chamado de negão”. A alegria e a contundência política, a alegria como contundência política.
Em suas falas, no roteiro do show e na história que carrega consigo (remontando ao manguebeat e a toda a carga simbólica do movimento), Otto prestou tributo à amplitude do mapa nordestino traçado ao longo da noite. Canções como “Ciranda de maluco”, “Cuba”, “Bob”, “Carinhosa” e “6 minutos” afirmavam, em poética e música, uma ética de existência afinada ao chão que se celebrava ali — assim como o repertório de seu mais recente álbum, “Canicule sauvage”, de menor impacto.
Mesmo a participação, mais afetiva do que efetiva, de sua mulher, a atriz Lavínia Alves, apontava nessa direção luminosa — pela afirmação do amor como norte. A lembrança de “Da lama ao caos” e “Praieira”, marcos fundadores de Chico Science & Nação Zumbi, encaminhou pra explosiva reta final e evidenciou o Brasil a que se filiava ali. Era como se Otto parafraseasse o verso de sua “Lavanda”, encontrando eco na plateia, no estado da federação que se estende para além dela, na região que se estende para além dele, no país que se estende para além deles: free Nordeste pra mim é pessoal.
Dia 2
Assim como no sábado, primeiro dia do Festival Radioca, o domingo foi marcado pela forte presença de artistas do Nordeste — quatro das seis atrações, para ser mais exato. Manteve-se assim muito do tom do sábado, em que todos os escalados eram originários de estados nordestinos. Ou seja, seguiu-se a afirmação da força da região sobre o Brasil, especialmente sobre o país que se anuncia. Alinhados na mesma direção (o futuro), outros holofotes porém se acenderam: fosse na contundência política dos raps de Vandal (em colaboração com a banda Bagum) e Bixarte; na liberdade musical e poética de Ana Frango Elétrico; no ativismo pela beleza de Zé Manoel; no prazer do baile de Mariana Aydar; no reconhecimento de que as estradas que vêm de longe podem levar longe, como mostrou o diálogo de Russo Passapusso com Antonio Carlos & Jocafi.
O domingo foi aberto pelo encontro da banda Bagum com o rapper Vandal, ambos baianos. Às 16h, já havia um público numeroso e bastante interessado nas trocas que vêm se estabelecendo entre os dois — trocas muito representativas das possibilidades da música e da cultura brasileiras. De um lado, os grooves e o clima da Bagum, uma banda instrumental indie. De outro, a rima agressiva e crua — a despeito de toda sua sofisticação poética, esperada especialmente num país que tem nomes como Sabotage, Djonga e Mano Brown — de Vandal, balaclava na cabeça e correntes no pescoço. O fato de Vandal ter louvado Letieres Leite e apontado Gal como sua referência maior diz muito do que se deu ali.
Pouco depois de abrir os trabalhos pedindo proteção à pombagira Maria Padilha sob as bases do funk carioca, a rapper trans paraibana Bixarte cobrou da plateia: “Pode ser melhor, porque tem travesti viva no palco! E declarando vida em abundância!”. Estava tudo posto ali: a forma como a artista explora gêneros musicais periféricos, o sexo, os arquétipos femininos, a religiosidade afro-brasileira, tudo em prol de uma performance que é tanto política quanto dançante — movida pela energia vital do tesão, necessário à política e à dança.
Sob um olhar rápido e preguiçoso, a carioca Ana Frango Elétrico estaria longe desse lugar combativo de um Brasil periférico que passava pelo palco do festival desde o dia anterior, em grande medida. Porém, sua defesa artística da liberdade em tudo se afina ao que se cantava e dançava ali até então. Uma defesa plena da leveza e da graça (lida como humor e frescor) do melhor espírito do Rio de Janeiro e, além disso, marcada pela invenção — nos versos, no canto, nos arranjos. Tudo dentro da delícia do pop — “Mulher homem bicho”, apenas pra citar uma, é exemplo bem acabado do prazer, da experimentação e do compromisso existencial da artista. E, por fim, sua leitura de “Ilegal, imoral ou engorda”, de Roberto e Erasmo, abre um jogo de ironias e contra-ironias nesse sentido, em mil camadas.
O pernambucano Zé Manoel abriu seu show com o lirismo lamento antirracista “História antiga”. A calma de seu canto e a lindeza da melodia não diminui em nada o impacto da canção — pelo contrário, o potencializa. Toda a música do pianista e compositor afirma a tradição da beleza na canção brasileira, que vem dos velhos sambas-canção de Elizeth Cardoso às valsas de Orlando Silva, passando pela bossa nova mais romântica. A beleza, porém, não é vã — ela aponta com firmeza na direção do país que é o mesmo de Bixarte, de Vandal, de Ana Frango Elétrico. Os acordes jobinianos que ele incorpora à “Dança do bumbum”, do É o Tchan, ao gim do show, são, dessa forma, mais que uma bem-humorada brincadeira.
Mariana Aydar, de São Paulo, investiu exatamente em sua ligação com o Nordeste — terreno musical que marcou o início de sua carreira e do qual se reaproximou nos últimos anos. De “Espumas ao vento”, sucesso na voz de Fagner, a “Feira de mangaio”, clássico do repertório de Clara Nunes, passando pelo hit “Morango do Nordeste”, a cantora promoveu um arrasta-pé com pegada contemporânea — sem abrir mão do protagonismo do acordeon, ora lírico ora nervoso.
Show mais esperado da noite, o encontro de Russo Passapusso com a dupla Antonio Carlos e Jocafi foi uma bela reverência à memória da canção popular. Mais significativa ainda por se tratar de uma memória em grande medida apagada. “No museu que fizeram ali do lado do Mercado Modelo não tem o nosso nome”, diz Jocafi no palco, referindo-se à Cidade da Música da Bahia, sem esconder a mágoa de quem, de diversas maneiras, cantou o estado e sua cultura. Uma memória de certa musicalidade baiana (nos vocais, nas temáticas) que vai muito além do superhit “Você abusou”, cantado em coro pela plateia, e que foi celebrada ao longo do show na evocação do repertório antigo da dupla.
Mais do que simples nostalgia, porém, no encontro dos três a memória exerce seu sentido de impulsionar o futuro. Não somente porque o show marca o lançamento de um disco de inéditas assinado pelo trio, “Alto da maravilha”. Uma fala de Russo faz vislumbrar esse poder de estopim da memória: “Minha vida mudou quando eu, o menino da loja de discos, puxei o disco ‘Ossos do ofício’ (que Antonio Carlos & Jocafi lançaram em 1975)”. O artista, frontman do BaianaSystem (manifestação das mais impactantes da música baiana na última década), aponta assim para as impensáveis e incontroláveis ondas que a música popular pode provocar.
O movimento de descobrir na memória o que virá (ou de ressignificar o que foi a partir do destino que se deseja alcançar) ecoa como os graves ao fim do show. Lição a cada um que dança ali, à Bahia, ao Brasil.