Por Paulo Almeida – publicado originalmente nos Cadernos de Música
Thiago Amud carrega toda a complexidade de ser um músico genial nascido no Brasil no final do século passado. Viveu, até agora em 2020, metade de sua vida no século XX e metade no século XXI. Sua estreia profissional se dá justamente quando a indústria musical respirava com a ajuda de aparelhos e sua maturidade artística acontece num momento de transição do digital para o mundo virtual do streaming. E nasceu no Brasil, país que, por desleixo ou vocação, deixa de lado, na prateleira dos esquecidos, nomes como Hermeto Pascoal, Guinga, Tom Zé e Clementina de Jesus.
Seu primeiro disco, Sacradança, é um belíssimo cartão de visita. Ou um três-por-quatro do viria pela frente. Dez músicas numa proposta quase barroca em seu melhor sentido revolucionário. ‘Pedra de iniciação’ abre o disco e sua introdução de 40 segundos é pra mim um resumo da obra do compositor. Seu caráter épico, os terreiros com seus ogãs, os sopros da anunciação, tragédia que deságua num caudaloso rio de esperança, o coro, a sobreposição de texturas, timbres, música erudita e popular se roçando… Uma miríade de sensações que nos jogam para a melodia desconcertante e sua letra anunciando o que estaria ainda por vir naquele e nos outros discos: erudição, originalidade, política, religião, cinema, história, literatura… Vida, enfim. Se Cícero, do “Sonho de Cipião”, tivesse sido compositor, certamente teria escrito canções como as de Amud.
E o que se anuncia nesse primeiro trabalho? Dom Sebastião? A parusia? Um país à beira de um colapso político/ético/moral/econômico? O fim das utopias, na melhor tradução de Bauman? A distopia Black Mirror da segunda década do século XXI? O “destino da nação”? Quarenta segundos, senhores. Concentrem-se nesses 40 segundos que abrem o “Sacradança” e se deixem levar por seus sentidos. “O que está por vir, virá!”, disse Tirésias a Édipo. Sigamos.
Esse ensaio não pretende esmiuçar canção por canção da vasta obra do jovem artista. Mas é importante encontrar pistas entre elas – e são muitas – para tentar decifrar a filosofia do cancioneiro de Thiago Amud. Vamos avançar mais sobre a primeira música do primeiro disco, após a já comentada introdução apoteótica:
Pedra pão pra fome dos milênios
Concreção que o sal corrói
Pedra-pomes pra polir os ventos
Que nos manda Niterói
Pedra sol, o dia incandescendo
Quando a madrugada ainda não foi
Pedra mar, procela de granito
Pirambeira preamar
Pedra mármore à guisa de jazigo
Só pra lua profanar
Pedra mãe, velando pela tribo
Velha testemunha ocular
Da dança dos deuses
Nas águas e sombras
Da Guanabara
Batuques de Elêusis
Mistérios de Donga
Sacra seara
Sacra seara
Os homens passando
Saindo de partos
Indo pra terra
E a pedra esperando
Nutrindo lagartos
Fora da guerra
Fora da guerra
Cristaleira de tempo maciço
Protegida do trovão
Pedra lei conforme estava escrito
O destino da nação
Pedra rei, gigante adormecido
Vem nos redimir, Sebastião!
Nas horas escuras
A montanha serena
Manda um recado
”Sou eu quem procuras
O alívio das penas
Dos condenados
Dos condenados”
A pedra falava
Ao longo das eras
Sempre baixinho
Ninguém suspeitava
Que no meio da pedra
Tinha um caminho
Tinha um caminho
Morador da Urca desde menino, Thiago se inspira ali com certa frequência. Esse bairro nobre do Rio de Janeiro, com cara de cidade interiorana, é mais conhecido por se plantar ao pé de uma das formações rochosas mais visitadas do Brasil, o Pão de Açúcar. E, logo ali ao lado, há o Morro Cara de Cão, onde Estácio de Sá fincou a Pedra Fundamental da Cidade do Rio de Janeiro, como Marco de Posse da Terra, em 1565. Entre esses dois morros (Pão de Açúcar e Cara de Cão) fica a Praça de Fundação da Cidade, onde teria ocorrido a cerimônia da fundação.
Para desespero dos geógrafos, os cariocas chamam qualquer formação rochosa de pedra – Pedra do Arpoador, Pedra do Cristo, Pedra da Tijuca, Pedra Branca, Pedra Bonita, Pedra da Gávea, Pedra do Telégrafo… e por aí vai. A Pedra Pão do início da canção é, pois, o Morro do Pão de Açúcar. A cidade fundada sobre uma rocha nos traz a lembrança bíblica da fundação do cristianismo sobre os ombros de Pedro, a pedra fundamental da igreja católica – como descrito no Evangelho de Mateus. O segundo verso aponta para o desgaste natural da pedra sob a inclemência do sal, do tempo, dos ventos. A natureza se ajustando na mais perfeita ordem natural. Caetano Veloso, na canção “Ela e Eu”, já havia descrito fenômeno semelhante no verso “ondas queimam rochas com seu sal”. Mas novamente no primeiro livro do Novo Testamento, o Evangelho de Mateus, encontramos possibilidades outras de leitura para o verso de Amud: “Vocês são o sal da terra. Mas, se o sal perder o seu sabor, como restaurá-lo? Não servirá para nada, exceto para ser jogado fora e pisado pelos homens. Vocês são a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade construída sobre um monte”. O “sal insípido”, não por acaso expressão que dá nome a sétima faixa do disco, seríamos nós, os homens sem fé, a corroer a rocha, Pedro, a fé cristã?
Servindo de suporte à verve poética única de Thiago Amud, sobre qual paira a luz inspiradora de Jorge de Lima e Guimarães Rosa, está a melodia inspirada e a harmonia prenhe de soluções inusitadas. Os versos seguintes não deixam dúvidas de que se trata do Morro do Pão de Açúcar e são arrematados pela visão do insone poeta: “pedra sol / o dia amanhecendo / quando a madrugada ainda não foi”. Nesse último verso, que cai entre os compassos 12 e 15, a melodia acentua a lentidão do tempo, martelando a mesma nota sobre cada uma das sílabas do verso. A madrugada que nunca acaba. Recurso semelhante entre os compassos 28 e 30, no verso “velha testemunha ocular”. A mesma nota se repete sobre todas as sílabas, ressaltando o tempo que se esgarça sob o testemunho da pedra.
A música segue colocando a ‘pedra fundamental’ no centro e acima de tudo. Nossa Pedra do Reino é a testemunha ocular da ‘dança dos Deuses’, ‘batuque de Elêusis’, ‘mistérios de Donga’. A referência à dança dos Deuses e ao mito de Elêusis, rito pagão e secreto, conhecido como ‘mistério de Elêusis’, poderia sugerir que nossa rocha (a igreja, a fé, a razão) se impõe sólida e imaculada através dos tempos e sobre todas as outras religiões politeístas. Depois, ‘mistérios de Donga’: notem que ele troca ‘batuques’ por ‘mistério’, como que afirmando que o verdadeiro mistério fundador da identidade nacional é o samba e o resto é ‘batuque’ [o substantivo colocado ali, antes do nome de Donga, um dos Oito Batutas e autor do primeiro samba gravado, parece ser também uma homenagem ao livro de Hermano Vianna, ‘O Mistério do Samba’]. E arremata: “sacra seara, sacra seara”, novamente evocando Elêusis e os ritos pagãos aos cultos agrícolas.
Os próximos versos ressaltam a onipresença e, novamente, a altivez da ‘pedra’ pairando sobre as questões humanas: nascimento, vida, morte. E a pedra lá, o próprio tempo encarnado em mineral.
Em seguida, os versos sebastianistas que se iniciam com uma menção à Lei Mosaica, embebidos na retórica esperançosa – que, veremos, se estenderá por toda obra de Amud em alternância com momentos de grande desesperança: “Pedra lei conforme estava escrito
O destino da nação / Pedra rei, gigante adormecido / Vem nos redimir, Sebastião!”.
A ‘Pedra’, enfim, se expressa. E temos aqui clara menção à viagem de Dante e Virgílio ao purgatório – é lá, na montanha, que os arrependidos irão expiar seus pecados: “o alívio das penas dos condenados”.
E arremata parafraseando um dos mais conhecidos versos do maior poeta brasileiro. Enquanto Drummond assinalava que no ‘meio do caminho tinha uma pedra’, Thiago dá outro sentido ao inverter a frase apontando que “no meio da pedra tinha um caminho”. Ali, na “pedra fundamental”, na “pedra lei”, na “pedra rei”, na “pedra pão” está a possibilidade de se erguer uma nação. E que forças são essas capazes de alicerçar um país? Com que símbolos trabalhar para que essa brasa se transforme em fogo? Essa canção que abre o primeiro disco, é bom lembrar, nos dá ótimas pistas para entrar no universo do jovem compositor.
O disco segue por caminhos insuspeitos com Gnose Song – que tem um palíndromo perfeito em seu primeiro verso: “a ira mora na romaria”, e serve quase que como um arremate da primeira canção.
Depois, passa por “Enquanto existe carnaval”, “Inteira, despedaçada” e “Irreconhecível”. Canções que tratam, de formas distintas, do universo feminino e de como o eu lírico se relaciona com essas mulheres. Vale ficar atento ao lugar da mulher nesse disco. Em “enquanto existe Carnaval”, nosso autor pede a ela o amor furtivo, o beijo descompromissado, a alegria dos corpos que se encontram durante o carnaval. Ela é todas e nenhuma. É apenas um corpo (mais um) na multidão. “Inteira, despedaçada” fala da solidão das mulheres. A mulher que tem uma ponta de alegria nos copos, na noite, na promessa de felicidade vazia dos homens. Nada resta a ela no dia seguinte. Nada. Já em “Irreconhecível”, Amud canta com Guinga certa mulher que volta a procurar o antigo amor e é recebida com indiferença e certo rancor. Ele é duro, muito duro com ela em suas palavras.
“Marcha dos desacontecimentos” é uma das canções mais explicitamente políticas de “Sacradança”. Seus versos se jogam sobre a classe média descolada brasileira… Quase um retrato da juventude “esclarecida” das passeatas de 2013. Uma música que talvez não fosse composta seis anos depois, após o golpe que viria a tirar o PT do poder com o impeachment da presidente Dilma Russef. Essa suposição bastante idiossincrática se dá por entender claramente a posição política de Thiago Amud, com sua cruzada anti-Olavista e anti-fascista. Sem dúvida, essa canção composta à luz de todos esses acontecimentos pós 2013 enfraqueceria politicamente ainda mais nossa combalida esquerda. A canção é um primor, com uma boa dose de sarcasmo e outro tanto de ironia, ela capta bem a fragrância de certa “esquerda universitária” da zona sul carioca.
Formada por trísticos, compostos por versos eneassilabos, com nove sílabas métricas, seguidos por duas redondilhas maiores, com sete sílabas métricas cada, a marcha rancho de Thiago Amud é escrita em primeira pessoa. Como num confessionário imaginário, a personagem vai se penitenciando ao longo da canção ao descrever sua marcha lacradora. A personagem desfia suas escolhas e deixa claro que as faz com a vontade de pertencimento.
O crítico Túlio Ceci Villaça faz belas observações sobre a canção:
“A marcha dos desacontecimentos é uma marretada. E o mais surpreendente é que seja uma marretada voltada para a esquerda do espectro político, mas sem por isso se identificar plenamente com o outro extremo deste espectro. Neste sentido, parafraseando e invertendo a famosa frase de Fernando Collor, ela deixa a esquerda indignada e a direita perplexa. Sua crítica terrível a grande parte das estratégias de pensamento e ação da esquerda (em especial talvez a chamada esquerda festiva, citada quase nominalmente nos abraços à Lagoa), denuncia o que esta tem de inócuo e inútil, o que nelas não passa de tentativa vã e egoísta de tranquilizar a própria consciência. Não por acaso, aproveita o formato festivo da marcha carnavalesca (que no entanto foi e é meio de crítica política) e transfigura-o num arranjo de guitarras cheio de tensão, não bastasse a melodia de curvas inesperadas característica de Thiago, e de que falaremos adiante. E não à toa o clipe gravado no meio do Cordão do Boitatá, bloco carnavalesco carioca. O próprio Thiago explica em entrevista, falando de sua subversão do termo MPB em Música Purgatorial Brasileira:
Às vezes escrevo canções diabólicas, não como adesão a potências disruptivas, mas, ao contrário, para exibir em tons sinistros o avesso da bondade, a fim de que esta ressalte como absolutamente necessária. É uma máscara, um jogo dramático (N. do T. Notar as máscaras alegre/triste do clipe da Marcha). Foi assim que fiz Sal Insípido, A Marcha dos Desacontecimentos, mais tarde A Marcha do Grande Lider (…) E é assim que tramo diversos arranjos: sinto que eles são a metade agônica de um silêncio luminoso que ainda virá.
A posição de advogado do Diabo, porém, não deve ser confundida com a de franco atirador. A produção de Thiago não se presta a ser uma metralhadora giratória, e Thiago recusa o papel de enfant terrible. O que não a torna mais confortável, não apenas para ele, mas para seus alvos principalmente. Como em Glauber, o fato de Thiago recusar-se à tentação de tomar partido amplifica a virulência de sua crítica. E a Marcha dos desacontecimentos não deixa de ser uma boa porta de entrada para compreendermos os procedimentos musicais de Thiago, e os caminhos tomados por sua música.
Thiago não é um iconoclasta. O que ele faz é desenvolver o lado obscuro da tradição, mas com a intenção nítida de levá-la adiante. Num certo sentido, até um conservador. Porém, um conservador que leva corajosamente a tradição às últimas consequências, a ponto de não conservá-la – contradição que se resolve na prática. Assim também, a letra da Marcha dos desacontecimentos combate com fúria o relativismo pós-moderno – na medida em que este se torna um bom pretexto para o imobilismo, ou para a ação meramente mimética. Seguimos então para Terra em Transe. Glauber Rocha com a palavra:
Eu detestava todas as coisas apresentadas em Terra em Transe, filmei com certa repulsão. Lembro-me do que dizia ao montador: estou enojado porque não acho que haja um único plano bonito neste filme. Todos os planos são feios, porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre, de um falso barroco. O roteiro me impedia de chegar à espécie de fascinação plástica que se encontra em Deus e o Diabo. Às vezes, pode ser que eu tenha tentado escapar a este ambiente, mas o perigo consistia em atribuir valores aos elementos alienados.
Terra em Transe é certamente um filme inovador. Caetano Veloso chega a afirmar no livro Verdade Tropical que se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe. Porém, antes de cairmos na dicotomia inovador / conservador, notemos o que há em comum entre ele e boa parte da música de Thiago, a busca pelo lado obscuro, mesmo feio, de uma estética. Aliás, Caetano mesmo, falando da Tropicália mais tarde, afirma que, enquanto compositores tradicionais como Tom e Chico continuavam buscando uma arte do belo, ele, Gil, Tom Zé procuravam uma que fosse de alguma forma feia. A divisão apolíneo / dionisíaco pode soar dicotômica aqui – e não deixa de ser. Mas é possível pensar que Thiago, tendo seguido o caminho de Tom e Chico, tenha tomado mais tarde a bifurcação, permitindo esta decisão uma infinidade de possibilidades – inclusive o trânsito entre estes dois caminhos. Além disso, Terra em Transe é o marco da filmografia brasileira que é por sua capacidade de captar o zeitgeist de sua época. Há nele o retrato de uma busca identitária, mas uma busca ferozmente crítica. Nada, ninguém se salva. Nem o político reacionário e golpista, nem o populista de esquerda, nem o dono dos meios de comunicação, nem mesmo o intelectual/artista perdido em meio à barafunda de relações perigosas, imaginando-se capaz de influenciar o rumo dos acontecimentos, mas apenas servindo de joguete de forças maiores. Há muito em comum entre o teor crítico da Marcha dos Desacontecimentos e o de Terra em Transe; porém este, pela envergadura da obra, alcança um círculo muito mais vasto”.
Já Pedro Sá Moares lembra que certa vez, Thiago subiu ao palco do Circo Voador numa participação no show do Graveola e o Lixo Polifônico e foi ovacionado ao cantar essa música. A juventude retratada na música, com seus baseados em punho, não se via ali refletida e ria e aplaudia. O autor poderia ter encerrado com: “vocês não estão entendendo nada. Nada!”.
A MARCHA DOS DESACONTECIMENTOS
(Thiago Amud)
Pra me desanuviar da culpa
Condenei a cristandade
Conspirei contra a cultura
Quando o peito abriu pra piedade
Destilei cinismo ralo
Pra poder beber no Baixo
Para me evadir das evidências
Repeti relativismos
No que fui muito aplaudido
Como o sofrimento me enfadasse
Engajei-me numa ONG
Dei abraço na Lagoa
Para que o assombro da verdade
Não doesse quase nada
Reclamei cidadania
Quando uma memória me exigia
Contrição ante o sagrado
Apertei um baseado
Sou da legião, peço passagem
Ponho o rancho na avenida
Taco a vida na voragem…
Para aliviar a consciência
Transtornei meu livre arbítrio
Num instinto de toupeira
Como o meu projeto não vingasse
Rebelei o baixo ventre
Descobri-me comunista
Pra vogar na crista da história
Recortei o meu destino
Como manda o figurino
E se a criação me revelasse
A mão suprema que a sustenta
Eu tinha um plano de imanência
Pra glorificar minha vontade
Eu desconstruí o mundo
E pus o mundo na linguagem
Quando fulgurou a Parusia
Gracejei, pois bem sabia
Que era mais uma palavra
Sou da legião, peço passagem
Ponho o rancho na avenida
Taco a vida na voragem
“Sal Insípido” é a próxima música. Já mencionada aqui, a letra da canção amarra com maestria as duas outras canções esmiuçadas acima “Pedra de iniciação” e “ Marcha dos desacontecimentos”. Nessa faixa, o músico Armando Lôbo empresta sua voz para dar o recado junto com Amud. E a mira é a geração do compositor e toda sua festividade praiana ao se deparar com as grandes questões político-sociais e, ainda, com a religião. Se nA Marcha dos Desacontecimentos acendemos um baseado na hora sagrada e gracejamos perante a Parusia, aqui seremos condenados ao inferno, chafurdando junto ao monturo. Com certo ar profético, a canção encerra o assunto exposto nas duas primeiras. Novamente – e com mais potência – somos confrontados com nossas responsabilidades.
Sal Insípido
Somos o sal insípido do balneário
Representantes do mundo binário
Mal divisamos o nosso futuro
Quando chegar a roda no seu ponto extremo
Tributaremos libações ao demo
Chafurdaremos dentro do monturo
Hoje, que são as vésperas do grande dia
Estamos na vanguarda da apatia
A celebrar nossos festins sem causa
Quando o véu rasgar, desnudará a gente
E o escondido estará evidente
Somos a Terra Mãe na menopausa
Somos onipresentes desde priscas eras
Visgo de caos no eixo das esferas
Travo de dor desmilingüindo os ossos
Hoje somos o joio enganando que é trigo
E quem avisa não é inimigo
Pobre de quem não virar um dos nossos
Nós, empedernidos contra iniqüidades
Esclarecidos quanto às novidades
Nossa missão anda bem avançada
Pois, se nessa Idade de Ferro ferrenha
É inevitável que o escândalo venha
Já bloqueamos a porta de entrada
Seguimos com “Aquela Ingrata”, belo frevo confessional e muito bem humorado no qual o autor expõe sua labuta de compositor quase obsessivo pela busca da perfeição. Mas para sua infelicidade, a canção lhe escapa e acaba ganhando o mundo através de outra pessoa.
Regonguz é a grande pérola do disco. A canção que já no primeiro disco coloca Thiago Amud no panteão dos grandes compositores da música popular brasileira. Extraído do conto “O recado do morro”, do livro “No Urubuquaquá, no Pinhém”, de Guimarães Rosa, o vocábulo “regonguz” se refere a um desses seres que assombram os sertões brasileiros: “Vez em quando, batia o vento — girava a poeira brancada, feito moído de gesso ou mais cinzenta, dela se formam vultos de seres, que a pedra copia: o goro, o onho e o saponho, o ôsgo e o pitôsgo, o nhã-ã, o zambezão, o quibungo-branco, o morcegaz, o regonguz, o sobre-lobo, o monstro homem”.
A etimologia inadivinhável do neologismo de Rosa instigou Amud a escrever essa canção. O compositor não se arrisca a definir seu sentido, não se afunda na cruel lama tentadora de querer resolver a questão. Ao contrário, ele abre as possibilidades e busca definições no próprio universo do autor de Grande Sertão: Veredas. O resultado é um baião delicioso, com elementos não característicos do ritmo como o timbre escolhido para a guitarra e o compasso que sofre alterações ao longo da canção. Apesar disso, o sertão está lá. Não só no acordeon, na zabumba ou no triângulo, mas sobretudo na intenção.
A presença divina, está ali presente também: no mistério, no fantástico, nas sombras e luzes que os neologismos de Rosa nos permitem. “As coisas estavam cheias de Espírito Santo”, adverte o compositor no primeiro verso da música. No meio da canção, o autor brinca com outra imagem bíblica, “no princípio era o Verbo”, e nos lembra que o fato de não estar compilada em algum dicionário não tira a legitimidade de nenhum vocábulo quando complementa “que nem havia dicionário por lá”. O léxico incomum da prosa do autor de “Grande Sertão: Veredas” produziu inúmeros estudos, muitos autores se embrenharam em seus emaranhados para tentar decifrar seus vocábulos. Thiago Amud não pretende em “Regonguz” ser didático ou exaustivo. Antes, pois, “Regonguz” é uma declaração de amor ao Brasil profundo e à língua portuguesa de Guimarães Rosa.
Regonguz
As coisas estavam cheias de Espírito Santo
Regonguz é capaz de ser
Outro nome que tem vento
Em sertões de tempo lento
Viração do ar num centro
Redemunho quer dizer
Ou talvez regonguz será
A alcunha do capeta
Algum boi da cara preta
O alfabeto sem a letra
A palavra sem lugar
Não está no dicionário
Mas também
Pouca coisa lá está
No princípio era o Verbo
E nem havia dicionário ainda por lá
Regonguzeia, meu bem
Faz bem regonguzear
Toda palavra que te mete medo
Claro que é quase pra te pegar
Voz que espanca o ar
Zum zum zum, algaravia
Quando espoca em noite fria
É que a realegria
Toca o Urubuquaquá
(Ei andei andei andá
Dei diandá diandei
Diandá diandalei
Diê diá
Ei andá andá andei
Dei diandá dendalei danda
Ei andeiandei lá)
E fez-se o Alfabeto
Fecha o álbum a canção “Madrêmana”, que, mais do que uma súplica à morte para que se afaste, é uma prece de um jovem que ainda terá muito o que realizar. A imagem da morte, entre versos lindos, rodeando-lhe a carne é por demais simplória para esgotar a intenção do compositor. Minha hermenêutica, distanciada pelo tempo obviamente, crê que o autor queria dizer coisas outras. Para nossa sorte, quase que uma promessa de que continuará compondo apesar da tentação de parar e sucumbir ao ostracismo que o mercado lhe impõe.
Apesar de ser bem recebido entre seus pares, poucos críticos falaram sobre o Sacradança. Somente Tárik de Souza, Aquiles (do MPB4) e Ed Motta – que chegou a comparar Thiago com Frank Zappa – fazem comentários relevantes sobre o trabalho.
No final de 2011 nasce o Coletivo Chama. Um momento de felicidade completa. Amud, Thiago Thiago de Mello e André Felix se reuniam semanalmente no bar Palhinha, um pequeno boteco no Largo dos Leões, no Humaitá. Num show do grupo Escambo no bar Semente, Thiago Amud e Edu Kneip foram convidados a participar. O bar Semente era um pequeno estabelecimento na rua Joaquim Silva, em pleno coração da Lapa, e foi responsável por abrigar e dar espaço a boa parte da cena carioca que se formava a partir dos anos 2000.
Nesse show do Escambo, estavam na plateia André Félix, Ivo Senra e Cezar Altai. Ao final do show, Thiago Amud sugeriu chamarem Pedro Sá Moraes e Marcelo Fedrá para fazerem algo – para que “a gente mude nossa relação com a música”. “Acabou o amadorismo! Acabou a infância. Vamos fazer!”, bradou ao grupo reunido. Foi o estopim para a criação do Coletivo Chama.
O grupo passou a se reunir com frequência para falar sobre música, literatura, crítica, mercado cultural etc. Nada passava ao largo daqueles olhares atentos e críticos.
Em 2013, as coisas começam a ficar mais sólidas e Thiago Amud começa trabalhar no novo disco ‘De ponta a ponta tudo é praia- palma’. Com produção de Júnior Tolstoi, o CD é lançado no final do ano. Logo recebe várias críticas positivas. Ganha capa do Segundo Caderno, suplemento cultural do jornal O Globo, e é eleito (pelo mesmo jornal) como um dos dez melhores CDs do mundo lançados naquele ano. Nesse período, o trabalho de Thiago chega aos ouvidos de Caetano Veloso, que reconhece ali um grande compositor e passa a citar frequentemente Thiago Amud como herdeiro e grande artista.
Se “Sacradança” jogava luz sobre o Brasil atual, “De POnta a Ponta tudo é praia-palma” parecia querer buscar a origem de tudo: do descobrimento do Brasil, da distopia da segunda década do século XXI, do “fim da canção”, da aproximação espúria entre os poderes paralelos e os poderes institucionais, do destino trágico da nação.
Não à toa, o disco se inicia com “Fado de Bandarra”. Gonçalo Annes Bandarra, além de sapateiro, era profeta. Foi o autor das Trovas messiânicas, ligadas ao Sebastianismo. Interessante observar que o vocábulo “fado”, além de designar o estilo musical mais popular de Portugal, é também sinônimo de destino ou sorte. A canção anuncia a chegada da esquadra portuguesa ao solo brasileiro.
[o disco traz em seu encarte duas passagens insuspeitas: um trecho da carta de Pero Vaz de Caminha e uma citação de Simone Weil. E em sua capa, uma obra de Anna Bella Geiger em ouro]
A segunda música é a mesma que dá nome ao disco. Uma obra-prima, com arranjos que costuram trompas, acordeon e timbaus, e uma melodia em Si bemol, com uma letra repleta de lirismo e símbolos:
DE PONTA A PONTA TUDO É PRAIA-PALMA
(Thiago Amud)
De ponta a ponta tudo é praia-palma
Quebranto na vertente das montanhas
As aves evasivas embalsamadas
País de saúva e mar
Vivi pra te desvelar
Mercúrio, chumbo e césio nas aguadas
Quilombos entocados na caliça
As alegrias azinhavrando as almas
País de febre e luar
Morri pra te decantar
Quando olhei a terra inteira
Ardendo em vasto fogaréu
Eu vi que o morro da Mangueira
Parecia um inferno no céu
Grassou Saturno, tudo está em transe
O presidente zambo, a musa louca
Mas súbito as nascentes destilam sangue
País que agoniza luz
Teu nome é a minha cruz
Não permita Deus que valhas
Menos que o teu coração
Teus flancos de maracangalhas
Tua língua de Grande Sertão
De ponta a ponta tudo é praia-palma
Pero vaz de Caminha, Glauber Rocha, Guimarães Rosa, Hermínio Bello de Carvalho e Paulinho da Viola, Auguste de Saint-Hilaire, Jorge de Lima… todos estão ali. Assim como a descoberta, a vida, as guerras, as profecias. De ponta a Ponta se liga diretamente com Pedra de Iniciação em sua intenção e gesto. Acena para a fundação do Brasil. De maneira mais trágica, é fato. Mas não menos reverente.
A música seguinte, “Devastação”, narra um cenário de pós-guerra. Me remete de imediato à tragédia de Canudos, mas pode se referir à qualquer guerra acontecida no Brasil. Canudos se ergue aqui com mais possibilidade dada a ligação íntima com do autor com a literatura – e a Guerra de Canudos é o assunto de um dos mais importantes livros da literatura brasileira, “Os Sertões”, de Euclides da Cunha – e por reverberar diretamente na organização social das cidades brasileiras com as favelas tomando forma a partir da ocupação do Morro da Providência por ex-combatentes que retornaram e se viram sem assistência do Governo.
[essa leitura me permite ligar a canção a outra que vem mais adiante: “A saga do grande líder”.
Um dos trechos, que destaco da referida obra, pode ter servido de referência para a letra da canção:
“Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior.
Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos -de sorte que as chapadas grandes, entremeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.
Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.
E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.
Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas -o espasmo assombrador da seca.”
“Papoula Brava” é o hit do disco. A estranhíssima canção cai no gosto da criançada de maneira inusitada. É uma música sobre o próprio compositor, ainda que cheia de enigmas. E, novamente aqui, a montanha, a rocha, testemunhando o delírio do poeta. O arranjo com flautim, guitarras, pandeiro e triângulo é uma maravilha. Vale cada segundo de audição.
As próximas canções do disco, “No Contratempo” e “Carnaval na Mesopotâmia” não estão no meio do disco por acaso. Colocam o carnaval e o samba no centro da identidade nacional. Como se o carnaval e o samba fossem a nossa resposta ao velho mundo. “No contratempo” é um samba onírico. Um encontro que só pode acontecer em sonho, ou na poesia de Thiago Amud. Bonsucesso e Japão, sushi na batucada, curimba e haikai, umbigada e kabuki. Mistura afro-asiática que dá samba.
“Carnaval na Mesopotâmia”, frevo desconstruído, no qual Amud vai buscar na mitologia Suméria seu mote. Um frevo-samba exaltação ao rei Gilgamesh. Para ser cantado sob o sol escaldante do Rio de Janeiro.
Em “A saga do grande líder”, parceria de Thiago e Edu Kneip, Amud destaca em sua letra a ascensão do poder paralelo no Brasil. Como a relação espúria entre o poder institucional e o tráfico moldou a política no Brasil após a década de 1980, que culmina com a invasão de várias lideranças (ligadas ao tráfico, à milícia e às igrejas neopentecostais) no início dos anos 2000. A personagem, uma espécie de Fausto das quebradas, então um mero traficante, faz um pacto para se tornar um líder carismático e cheio de poder. A longa melodia de Kneip dá fôlego para que a crônica se desenvolva com detalhes. Mas o jovem Fausto construído pelo autor não parece ter se inspirado na famosa personagem de Goethe, mas sim naquela de seu antecessor britânico Marlowe. Escrito em primeira pessoa, nosso Fausto tupiniquim triunfa. Segue “De Ponta a Ponta Tudo é Praia Palma” com sua leitura trágica da formação do Brasil. Os símbolos que se erguem aqui e em “Sacradança” parecem premonições daquilo que assistiríamos pasmos depois de 2018. Mas são, na verdade, frutos de um olhar atento às movimentações que acontecem desde a chegada do PT ao poder e de um estudo profundo na modelagem dos nossos líderes (e sua aproximação com massas) desde Getúlio Vargas. Amud nos guia pela história do Brasil ressaltando momentos fletores e fatos marcantes.
A SAGA DO GRANDE LÍDER
(música de Edu Kneip/letra de Thiago Amud)
Nasci num paradeiro que chamavam de Brasil
No mês do carnaval de um já remoto ano dois mil
Tô velho e deslembrei do seio que murchei
Mas lembro das porradas sob as quais eu desmamei
Ainda meninote, eu intuí o meu lugar
O dente da ambição me acicatou a jugular
Tomei um semancol e num piscar do sol
De sub-aviãozinho virei dono do paiol
Mas isso não bastou, pra mim era humilhante
Examinar o espelho e achar um mero traficante
Até que ouvi uma voz: “Escuta, meu rapaz
Me entrega teu destino, liberdade e tudo o mais
Que eu faço teu futuro da maneira que te apraz”
Porém, passaram anos de marasmo e ramerrão
Baladas e chacinas, primavera e caveirão
E tome pancadão e tome inferno astral
Compadres no monturo, inimigos no jornal
A década acabou e eu vi na minha frente
Um comitê de gringos com seu líder sorridente
E conheci a voz daquele chanceler
Notei nas suas têmporas sinais de Lucifer
Sujeito de palavra que auxilia quem malquer
Que veio colocar minh’alma no penhor
E em troca me alçaria à estatura de senhor…
Que amor, que amor!
Faria da favela um território above the law
Um éden de heroína e de cheirinho-da-loló
Pro homem do amanhã ter trip cidadã
E o Rio de Janeiro ser melhor que Amsterdã
E completou: “myboy, I’m gonna give you what you miss
Teu morro será quase como fosse outro país
Um tipo de Hong Kong na aba de uma ONG
De iogues-comissários de gravata e de sarongue
E tu serás a lei!” – Oh, yes, I am the boss!
Tornei a olhar o espelho e me flagrei tomando posse
Dobrei os meus rivais, tramei reviravolta
E agora o fisco existe pra bancar a minha escolta
E as forças desarmadas vão calar sua revolta
O novo catecismo são meus ditos no pasquim
Meu nome é traduzido em esperanto e mandarim
Os gringos me mantêm, o lumpem me quer bem
E a alta burguesia do meu pó virou refém
Reservas, tribunais por sob as minhas patas
Eis-me o mais orgânico dentre os aristocratas
Tudo que eu sofri agora é meu troféu
É meu salvo-conduto pra moldar o povaréu
E ser glorificado antes de assar no beleléu
No mês do carnaval nasci no ano dois mil
E abri mais uma estrela em teu pendão com meu fuzil,
Brasil, Brasil…
O disco segue desolador com “Estigma”, que descreve alguma figura nefasta que lançou o mal sobre todas as coisas. Seria ela o Mefistófoles da canção anterior?
Interessante notar que o autor busca força na oração e na ação para combater o mal: “Quando então minha reza e meu gesto / Terão força pra te esconjurar / E quebrar tua imagem de pedra / Pra ter primavera ao invés de teu olhar?”. Prestem atenção especial ao coro fazendo o contraponto à melodia.
“Outro Acalanto” é uma música de despedida. Narra o cortejo fúnebre de Dorival Caymmi. Das canções mais belas e tristes de Thiago Amud, na qual o compositor se despede do mestre baiano. Caymmi compôs seu Acalanto para a pequena filha Nana – é, pois, uma canção de ninar. Thiago embala Caymmi em seu berço derradeiro. Convoca personagens marcantes para o cortejo, iça as velas da jangada e se joga ao mar com o mestre e seus cabelos de algodão. O arranjo, para voz e vibrafone (e sons de trovão), é triste e melancólico. A despedida é cheia de dor. Amud arreata a música com os versos “e descanse no fim da canção”, uma alusão à declaração feita por Chico Buarque em 2004 na qual questiona o fim do gênero como conhecemos, como se a canção tivesse se esgotado no século anterior e outros gêneros vão lhe ocupando o lugar. Para Thiago,”o fim da canção” chega com a morte de Dorival Caymmi. Imagem bonita e trágica, como algumas canções do baiano.
“Sou velho” anuncia que o disco está para acabar. Música em primeira pessoa que revela um compositor deslocado em seu tempo. Talvez uma brincadeira com o fato do compositor ser frequentemente acusado de careta e saudosista, de tradicionalista e hermético. Velho! De fato, sua retórica e sua erudição podem confundir o ouvinte. Mas só confunde os preguiçosos, pois sua inventividade harmônica, suas melodias sinuosas, seus arranjos e experimentações sonoras colocam Amud na vanguarda da vanguarda da música popular brasileira.
“Toante”, penúltima faixa do disco é fala sobre o tempo. Representa bem o tempo passsando após todos esses acontecimentos do disco para desembocar em “Silêncio D’Água”, a calmaria após a tempestade. A calmaria que anuncia o que está por vir. Como se terminasse o disco com reticências.
Um belíssimo trabalho sobre e para o Brasil.
Antes de entrarmos no terceiro disco solo, Thiago e seus companheiros de Coletivo Chama – Cezar Altai, Fernando Vilela, Ivo Senra, Pedro Sá Moraes, Renato Frazão, Thiago Thiago de Mello e Sergio Krakowski – lançam o disco “Todo Mundo é Bom”. Um disco conceitual, com parcerias entre os membros do coletivo, no qual se antevê um país distópico, uma nação à beira de um colapso. Thiago assina com Ivo Senra todos os ousados arranjos do álbum. E compôs quatro faixas: Chapa Branca (só dele),Quem vê cara (com música do Renato Frazão), Apocalípticos e integrados (com música do Thiago Thiago de Mello) e Passarinhão (também com música do Thiago Thiago de Mello). Além de cantar a música Polaquinha (Cezar Altai). Lançado em 2016, o disco prevê os neonazistas e pastores nas praças do país, a acadêmia sendo questionada, os abutres rondando a cultura, entre outras imagens que merecem ser revistas com atenção.
Enfim, em 2018, Amud lança seu tão aguardado terceiro disco. Um trabalho grandioso, que conta com a presença de 75 músicos e que ocupou mais de trezentas horas de estúdio. “O Cinema que o Sol não Apaga” encerra a trilogia iniciada com Sacradança e continua a jogar luz sobre o país. Mas agora temos talvez seu disco mais solar, com alguma ponta de esperança e certo acerto de contas quase que citando literalmente os problemas e perigos do país um a um. O nome do álbum logo dá claramente a pista de que o cinema é uma das inspirações. Thiago Amud, passou boa parte da adolescência cuidando de sua avó. Durante suas tardes sozinho com ela no apartamento da Urca, buscou companhia nos livros, nos discos e nos filmes. Acumulou durante esses anos vasto conhecimento nessas três áreas como consumidor voraz.
Logo no início do disco, há o belo samba “A Mais Bela Cena”, que tem como mote inspirador um trecho do filme “Rio, Zona Norte”, de Nelson Pereira dos Santos, no qual um sambista mostra uma composição para Angela Maria. O sambista é interpretado por Grande Otelo e Angela Maria é ela própria na tela. O samba de Zé Keti, “Malvadeza Durão”, que compõe a cena é realmente lindo. Vale lembrar que Zé Keti participou da famosa peça “Opinião”, ao lado de João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Maria Bethânia). “A Mais Bela Cena” carrega a forte afirmação “O Brasil tem que ter jeito” repetida inúmeras vezes ao longo da canção. A afirmação, porém, tem uma harmonia que não se resolve, como bem apontou o crítico Tulio Ceci Villaça: “o Brasil tem que ter jeito” não é o mesmo que “o Brasil tem jeito”. Há uma dúvida aí.
Os últimos versos elencam várias mazelas nacionais e as intercala com a afirmação acima. Thiago abre o disco, como sempre, com um recado direto do que estava por vir:
“Margens plácidas sem leito
O Brasil tem que ter jeito
Berço esplêndido onde eu deito
O Brasil tem que ter jeito
Por que foi que deu defeito?
O Brasil tem que ter jeito
Vasto sonho, tempo estreito
O Brasil tem que ter jeito
Não restou nenhum direito
O Brasil tem que ter jeito
Doce rio de rejeito
O Brasil”
“Calunga e Sebastião” complementa a canção de abertura do disco. Vem reafirmar e aprofundar a questão levantada. Já vimos que o artifício é utilizado nos discos anteriores. Seu título já evoca uma divindade ligada à cultura afro-brasileira e novamente Dom Sebastião. Religião e misticismo novamente servindo de inspiração e redenção. É uma das canções mais fortes do disco. Fala da violência da polícia, herdeira dos feitores de engenho; fala do problema da mineração, devastando tudo; e lança a pergunta sobre quem vai nos salvar. É importante apontar novamente o caráter premonitório dos versos “o dique um dia arrebenta / na taquicardia barrenta / de meu coração” ao tratar do problema da mineração um ano antes da tragédia de Brumadinho. E, no verso mais explicitamente sebastianista “Dom Sebastião voltando ileso da cruzada contra o mouro”, a liberdade de Lula após ser condenado e mandado à prisão pelo juíz Sergio… Moro!
CALUNGA E SEBASTIÃO
(Thiago Amud)
Ê povo tá que não pode
Com o baque do pagode
Nesses carnavais
Deu piripaque, deu bode
Sem tacape quem nos acode
Dos policiais?
Ê Calunga
Mãe do tocador
Ê Calunga
Mãe do patuscador
Ai meganha
Filho de feitor
Ê povo tá que não guenta
Tanta máquina cruenta
A violar-lhe o chão
O dique um dia rebenta
Na taquicardia barrenta
De seu coração
Ê Galanga
Mão do cavador
Ê Galanga
Mão do minerador
Ai Germânia
Dona do trator
De tanto veio vazado
Tanto viço avariado
O povo deve dar de ver
Mais uma vez um Monte Santo
Soerguido em seu espanto
Em cada canto em cada canto
Da metrópole de ouro
Dom Sebastião voltando ileso
Da cruzada contra o mouro
Cristo, Santo Espírito, Olorum
Yá
Quem há de ser o novo guia que o povo
Intuía?
Quem vai achar a mina que a pobre sina
Redima?
Quem vai baixar de um sonho e estancar o sangue
Medonho?
Quem vê no precipício o tempo propício
Do início?
Quem vai raiar o novo dia que o povo
Dormia?
Quem vai achar a mina que a pobre sina
Redima?
Quem vai baixar dum sonho e estancar o sangue
Medonho?
Quem vê no precipício o tempo propício
Do início?
A música seguinte, “ Do Político”, fecha o arco narrativo da abertura do álbum, assim como acontece nos álbuns anteriores. E joga no colo da classe toda a culpa que lhe é de direito.
“Plano de carreira” é uma brincadeira com o mercado. Ou melhor, com a inadequação de Thiago Amud às regras da indústria musical. Os divertidos versos culminam no refrão-chiclete eternizado momentaneamente por Michel Telo “ai se eu te pego”. Mas como em Thiago Amud nada é tão simples, o autor se revela (?) na canção “Autorretrete”, na qual ele usa uma infinidade de neologismos para se definir. E vai buscando referências na literatura, na cultura de rua, no cinema, na música, nas artes plásticas, para construir, à maneira de Rosa, seus neologismos adjetivantes.
AUTORRETRETE
(Thiago Amud)
Pálido lastimagro
Candango cambaio
Logicaótico adiantardo
Plenilusco-fusqueimado
Libelulanjo caleidoscópio
Vazalume estremunhado
Abaporu cobaio
Zambeta zangado
Ludicolérico alanceado
Protoprinspe supersapo
Sonambuláporo cornucópio
Minotauro anistiado
Thiagonizante
Metamorfético infante
Maremoto-boy
Celancantor popular
Hipopotálamo errante
Autorretrete aberrante
Cidadoido brasilhado
Tropicalheado
Indócil barbaropata catártico
Poetapado
Liricolapso encapsulado
Andropóide macacabro
Ornitonírico semiópio
Neurastênio abarrocado
Agnus Dei bastardo
Pró-feto priapo
Lubricatólico encalacrado
Psicopompo episcopado
Aristotêmico mitoscópio
Verbossauro angustiado
Metamorfético infante
Maremoto-boy
Celancantor popular
Hipopotálamo errante
Autorretrete aberrante
Cidadoido brasilhado
Tropicalheado
Indócil barbaropata catártico
Poetapado
Idiossincrético estropiado
Debilove girovago
Alacricri simulacronópio
Pós-conservolucionado
Pálido lastimagro
Zambeta zangado
Liricolapso encapsulado
Psicopompo episcopado
Alacricri simulacronópio
Pós-conservoluciolibelulanjo caleidoscópio
Vazalume estremunhadambuláporo cornucópio
Minotauro anistiornitonírico semiópio
Neurastênio abarrocaristotêmico mitoscópio
Verbossauro angustiago
Seguem quatro canções que falam de suas musas. Quem são as mulheres que rodam os discos de Thiago
“Desamanhecido” é uma homenagem à Bossa Nova. Melhor: é uma homenagem a João Gilberto. Ao trazer para a bossa canção um prato para lhe acompanhar voz e violão, Thiago evoca o samba de roda do recôncavo baiano. Linda declaração de amor ao pai da Bossa Nova. Mas, na letra, a musa abandona nosso herói solitário em seu quarto após uma noite de amor. E ele sofre com “seu quebrando me ardendo na veia”.
“O teu coração: superfície de Marte” fala da musa imune às investidas amorosas. Um coração gelado já havia usado na canção “Quem vê cara”, no disco do Coletivo Chama: “mas você tem palha no lugar que eu tenho um coração / palha gelada onde chispa não vira combustão”. Aqui, o coração da musa é inalcançável. Imune às investidas: “Teu coração montanhoso / Não estende aeroportos / Para as ridículas naves / Abarrotadas de lírios / E bagatelas terráqueas / Lançadas ao rés do cosmo / Sem conhecer contraparte”.
Em “Tênias e falenas” o autor quer matar a possibilidade do amor antes que se torne desilusão. É preciso matar o mal pela raiz. O amor não é para amadores, senhores. Melhor não mergulhar nessas águas turvas. O autor, então vai desfilando seus conselhos aos desavisados que procuram entrar nesse pântano e conclui que “é melhor mumificar a vida /
A fim de que ela seja inteira e branca”.
Catirina Desejosa não é bem uma canção sobre uma musa. A música de Edu Kneip ganha saborosa letra de Amud sobre a história do Boi-Bumbá. Apesar de não tratar diretamente de uma musa, a mulher aqui nessa canção e responsável pelas agruras de seu marido, que lhe faz todas as vontades e acaba caindo em desgraça. Há aqui um dos melhores momentos do letrista. Além de uma crônica impecável, com início, meio e fim, há um refinamento estético pouco visto na música brasileira atual. Rimas internas, humor, referências literárias. Enfim, uma das melhores letras de Thiago Amud. Impressionante o que ele faz em versos como:
Pobre do Francisco
Seu dinheiro não condiz
Co’o tanto de petisco pro jantar
e
Acabada a liça
O cabra esquálido espreguiça
O esqueleto que sacolejou
No qual a rima se faz com sílabas internas de uma palavra: ‘Franscisco’ rimando com ‘Condiz-Co’ e ‘petisco’; ‘Liça’ rimando com ‘preguiça’ e sílabas de duas outras palavras ‘que-sa (colejou)’. Detalhes que dependem de muito suor sobre a letra de uma canção.
Há, ainda nessa música, outra curiosidade no arranjo: as personagens são representadas por um instrumento específico. A guitarra representa Catirina, a Tuba representa o Pai Francisco e a banda de jazz representa o povo do final. É possível distinguir esses instrumentos conversando ao longo da música que termina com uma citação divertidíssima à canção “Hit the road Jack”, de Percy Mayfield, imortalizada por Ray Charles – o cantador cego do jazz americano.
Em “Brasileia”, com letra de Thiago sobre a música de Guinga, o compositor volta ao tema central do disco. Não que tenha se afastado completamente nas últimas músicas, mas aqui ele retoma explicitamente o mote. Vários personagens da literatura brasileira parecem nos dos perigos de cada fraquejada do país. Ou nos afundar ainda mais nesses problemas. Para muitos, é a música mais bonita do disco. Sem dúvida, é uma das mais impactantes. A introdução, com sopros e cordas, é desconcertante. Segundos que preparam para um acontecimento épico. Não por acaso, a formação da orquestra é idêntica à utilizada na formação da orquestra do hino nacional brasileiro. A formação do Brasil está na mistura desse destino trágico com a maravilha produzida pela literatura e suas personagens tão humanas – e novamente a língua portuguesa no centro de uma questão.
“2022”, ano das próximas eleições presidenciais, tem ecos de Terra em Transe. Nosso Grande Líder voltando ao poder. Uma liderança cheia de contradições, amado, odiado, vendido, traído… Que volta ao poder e “sai da vida para entrar na posteridade”.
Em “O Mundo Imaginal!, Amud reflete sobre a visão dos cegos, para a mira desse olhar sem luz. Mas nada no universo do compositor é tão literal como parece ser na entrega imediata. Ao longo da letra vamos percebendo que os cegos somos nós, passando indiferentes ao milagre da vida.
“Quando a esquina bifurca” é uma música tristíssima. E bela. Lembranças da Urca de sua infância e adolescência, da morte de sua avó materna – aquela mesma que ficou ano sob seus cuidados. “Qual o nome disso que me arde? / Como a morte coube numa tarde?” pergunta atônito na canção.
“Cinema Russo” é uma homenagem ao cinema de Andrei Tarkovski. Canção densa com imagens sobrepostas e pausas desconcertantes. Uma das mais lindas canções de Thiago.
Em “Cantilena Alada”, Amud volta ao tema da sua relação com a com a composição. O arranjo vocal é executado por Clarice Assad com rara elegância e beleza. Virou o primeiro clipe do disco.
O disco se encerra com “Nascença”: O mundo novamente nasceu / Senhora dona
Recebe o menino que Deus deu / Olha o verde na terra / Olha o branco na lua / Alegria, aleluia / Alegria, aleluia”. Fechando a trilogia iniciada com Sacradança, depois de passar o Brasil a limpo, parece que finalmente Thiago Amud enxerga a possibilidade de algum ressurgimento na terra arrasada. Uma canção de esperança e triunfo. Renascimento abençoado. A natureza se impondo em toda a sua exuberância. Apesar do homem.
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Está aqui uma leitura um tanto canhestra do material lançado em disco pelo jovem compositor carioca. Uma tentativa de salientar pontos importantes para a melhor fruição de seu cancioneiro. Da fé cristã ao misticismo sebastianista, dos ritos pagãos aos cultos afro-brasileiros, do literatura de cordel ao cinema de arte, do samba à música erudita, tudo está na obra dele, que talvez seja o maior herdeiro da Tropicália. Ao menos quem melhor a entendeu e soube dar um passo adiante. A isca foi lançada.
Paulo Almeida