Por Zé Miguel Wisnik
Thiago Amud é um compositor de canções exuberante. Sons e palavras, voz e vozes, caminhos melódicos, harmônicos, fórmulas rítmicas e timbragens, explorações instrumentais, tudo isso jorra de seus discos com rara pujança. E não se trata somente do exercício de uma verve musical e poética. Thiago Amud está no meio do redemunho do mundo, de cujas sombras extrai potências luminosas com ânimo aguerrido. Não é exagero afirmar que arde nele a flama imemorial dos vates, estranhamente renovada, conclamando o mito e a utopia a fecundarem o transe que vivemos.
Se nos seus trabalhos anteriores essa força se manifestava de maneira centrífuga, como pulsão irradiada em todas as direções a partir de seu centro inquieto, este São segue um roteiro organicamente calculado que gira passo a passo em busca de seu próprio núcleo. É essa imantação interna que faz do disco uma espécie de amuleto utópico e visionário.
O primeiro fundamento é a canção, sua duração, seu poder de instauração e de cura, invocado e ofertado na graça que dá nome à primeira faixa do disco (“Graça”). A música é a arte que não teme a repetição e o retorno de si mesma, como na voz e no violão de João Gilberto girando sem parar. “Graça” não teme também anunciar, à maneira do “Juízo final” cantado por Nelson Cavaquinho, um messianismo novo e desconhecido, que realiza num obscuro agora a promessa de futuro que a canção parece achar em si mesma de maneira assertiva.
Já o fundamento do fundamento – cósmico, físico e metafísico – vem na segunda faixa (“Mar de minha mãe”). Mãe, aqui, é a entidade-mãe de todas as águas que abraçam a Terra, da Índia ao Caribe e à Grécia, mas guiadas por um tropismo que as leva à Bahia – a Oxum, a Iemanjá Odoyá e a esse canto ijexá. Assim também, mergulhando no lugar fora das ideias que está cravado na música popular dos brasis mais ocultos, Thiago Amud faz com que a escuta de um vissungo – canto de trabalho de negros benguelas em Minas – vire um samba de roda visionário (“Candeeiro mariposa”). Guiada pela livre associação que ela própria desperta no vértice do inconsciente mineiro-baiano, a canção chega a um hipnótico rosário de fetiches que secretam atributos da nossa experiência coletiva (“dica de Quelé / figa de Guiné / rumo na maré / catimba de Mané / taba de pajé / aba de boné / zanga de banzé / cacimba de coité”). A quarta camada dessa instauração utópica e profética vem com “Mães”, em que o feminino contém a promessa do “Espírito São do Amor e da Paz”.
Se a primeira metade de São é a instauração dos fundamentos míticos extraídos da força da música popular, na segunda nos deparamos com a inflexão desses mesmos fundamentos sobre a história do Brasil em seu lancinante estado presente. A virada e o enfrentamento que se explicitam agora precisavam, antes, daquela preparação, pois é dela que se nutrem. Thiago desvenda a personagem do pequeno fascista neo-escravista incógnito cuja presença larvar salta para a evidência com o advento sinistro do bolsonarismo (“E a galera ria”). O samba faz uma rara anatomia dessa formação coletiva enraizada na síndrome individual. Dirigida em segunda pessoa à sordidez desse outro, atinge em cheio, por isso mesmo, a nossa cegueira.
“Chega de retranca, “Levante sul” e “História da revolução caraíba” são chamados incandescentes a que as forças indígenas da nação (no sentido mais amplo dessas palavras) destronem a tirania e sentem tacape no capitão. Elas e as outras bebem em vários messianismos e utopias visionárias – Agostinho da Silva (o Reino do Espírito Santo), Glauber Rocha (A Idade da Terra), Oswald de Andrade (o Manifesto Antropófago), Ariano Suassuna (Movimento Armorial), Olodum. Poderíamos definir o espírito do disco como uma pajelança poética e política, tomando a palavra, num dos seus sentidos possíveis, como uma série de práticas rituais em que se mesclam elementos sincréticos voltados para fins de cura, vislumbre e intervenção no presente.
São faz lembrar ainda as palavras de um crítico sobre Mensagem, o livro profético de Fernando Pessoa. Neste, a arquitetura do futuro, como objeto, é indissociável da demanda, menos evidente, por um sujeito capaz de afirmá-la. “Faltaria à Pátria não apenas um Graal a ser buscado, mas um ‘sujeito desejante’ capaz de assumi-lo e contê-lo. O que mais aguça a expectação do poeta não é a ausência do objeto do desejo, mas sobretudo a ausência de um sujeito desse desejo”, cuja tarefa de ser ele assume para si.* Por isso mesmo, embora possa soar como a certeza paranoica na redenção do todo, a profecia poética germina de fato na angústia, na solidão, na incerteza e no vazio, de onde abre voo para a afirmação límpida da possibilidade do impossível.
Thiago Amud sabe que não vai sozinho nessa empreitada, selando uma aliança mágica e à toda prova com seus músicos parceiros, instrumentistas, cantores, arranjadores, produtores, para chegar a um resultado esplêndido na transparência do som ao espírito são.
* Haquira Osakabe, “Fernando Pessoa e a tradição do Graal”. Remate de Males n. 8, Campinas, Unicamp, 1988, p. 95-103.