Por Leonardo Lichote
“CHICO BUARQUE & MARIA BETHÂNIA — AO VIVO” (1975)
“Olha a veia que salta/ Olha a gota que falta pro desfecho da festa”

Em junho de 1975, Chico e Bethânia iniciavam uma temporada de cinco meses no Canecão. Ambos celebravam uma década de carreira, e o show comentava esse período — no repertório panorâmico e em momentos como a projeção de imagens desses 10 anos de estrada (ou, como sugeriu Chico na época, “10 anos de Brasil”). Mais que isso, apontava para o futuro, nas canções novas de Chico, e trazia músicas de artistas como Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues para compor, ao lado das inéditas, o mosaico que formava um verdadeiro estudo sobre o amor. Nas palavras do compositor às vésperas da estreia, “(no show) existe toda a transação do amor: na mulher, no homem e na mulher, o amor no carnaval, culminando no amor de povo para povo, que é o ‘Tanto mar’”.
“Tanto mar” era a declaração de amor fraterno do Brasil que sonhava com a queda do governo autoritário ao Portugal que realizara esse sonho com a Revolução dos Cravos, em 1974. Mas a censura continuava atenta a Chico. Duas horas antes da estreia, chegou a determinação: a canção estava proibida. A decisão dos artistas — como se ouve no disco — foi manter a música, mas apenas na versão instrumental. Ainda havia léguas a nos separar da recém-alcançada liberdade portuguesa.
O olhar sobre o amor sobrevivia, porém. É esse olhar que, cruzado com a ideia de retrospectiva, atravessa as 18 faixas do disco. “Olê, olá”, do primeiro disco de compositor, abre o roteiro anunciando “um samba tão imenso” — assim como “Sonho impossível (The impossible dream)”, canção vertida para o português por Chico e Ruy Guerra para o musical “O homem de La Mancha”, projeta o voo no “limite improvável”.


Depois da urgência (ainda mais evidente no andamento mais rápido) de “Sinal fechado”, tem início à sequência de músicas dedicadas ao amor romântico, realista, doce, cru, rasgado, acabado. Na apaixonada “Sem fantasia”, Chico repete com Bethânia o dueto gravado com sua irmã Cristina — na voz da baiana, versos como “Vem meu menino vadio” soam como a integração perfeita de carinho e força. “Sem açúcar”, inédita composta para Bethânia, trazia outra encarnação da mesma figura feminina humilhada e potente de “Com açúcar, com afeto” — cantada em seguida no show, na sua primeira gravação na voz de Chico. O vazio deixado pelo amor que se vai está em “Camisola do dia” (Herivelto e David Nasser), “Notícia de jornal” (Luis Reis e Haroldo Barbosa) e “Cobras e lagartos” (Sueli Costa e Hermínio Bello de Carvalho).
“Gota d’água” e “Bem querer” — compostas para a peça “Gota d’água”, de Chico e Paulo Pontes, uma adaptação de “Medeia” para o subúrbio carioca — fotografavam o momento anterior ao fim do amor, quando o coração “é um pote até aqui de mágoa”. O caráter cíclico da paixão é, de formas diferentes, a matéria de “Foi assim” (Lupicínio) e “Flor da idade”, feita por Chico para a mesma peça e também para o filme “Vai trabalhar, vagabundo”. A segunda, aliás, por pouco não foi vetada. Na citação ao poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, Chico falava de um “Paulo que amava Juca”. Não podia. Chico explicou aos censores, por carta e com a ajuda de um dicionário, que amar não tem apenas conotação erótica. Convenceu e a canção passou.
Depois da metafísica com orquestração épica-festiva de “Gita” (Raul Seixas e Paulo Coelho), o carnaval se afirma como o cenário dos encontros e desencontros do amor em “Quem te viu, quem te vê” e “Noite dos mascarados”. Por fim, “Vai levando”, rara e então inédita parceria com Caetano, sintetiza a ideia que sustenta a beleza de “Chico Buarque & Maria Bethânia — Ao vivo”, que brotava naquele momento como uma flor num impossível chão: mesmo com tudo, apesar de tudo, a gente vai levando essa chama.
Foi assim até o último show da dupla, que marcou o início de um longo hiato. Depois dali, Chico ficaria 13 anos sem subir ao palco para uma temporada sua — fazendo apenas apresentações esporádicas.