Por Paulo Almeida
Basta entrar nos bastidores de qualquer produção cultural no Brasil para perceber que os ambientes ainda são dominados por homens brancos. Cargos de gerência ou comando são ocupados em sua grande maioria por homens brancos. Em funções subalternas, encontraremos mulheres em maior número. Em funções ‘invisíveis’ (faxineiras, copeiras, serventes, costureiras etc.), mulheres negras em sua maioria.
O grande desafio da produção cultural na década que se apresenta é promover a inclusão de mulheres brancas e negras em cargos de comando, de poder decisório e de fazer criativo. Ações afirmativas avançarão por transformações significativas em inúmeras frentes: na dinâmica do mercado formal, na cadeia da economia criativa, no amadurecimento do pensamento crítico, nas linhas curatoriais, na diversidade das propostas culturais.
Em conversa com produtoras mulheres de várias partes do país (SC, RS, BA, PA, RJ e MS), realizadas para melhor entendimento do problema exposto no texto, percebemos que as dinâmicas e demandas são as mesmas. As mulheres em cargos de comando são poucas. E quando se trata de mulheres negras, o problema se agrava. Todas as depoentes já sofreram assédio moral, desrespeito vindo de homens em posição inferior, e assédio sexual. As negras entrevistadas sofreram preconceitos raciais velados e explícitos por diversas vezes.
Como nos aponta Françoise Vergès, a questão da afirmação feminina passa antes pela questão decolonial. É preciso derrubar muros e reconstruir tudo se queremos uma sociedade saudável. Transpor esse pensamento para a área da produção cultural é urgente. Se não formos capazes de admitir que há um problema a ser enfrentado, não há possibilidade de avanço real.
O texto que aqui se apresenta é uma tentativa, ainda que pequena, de ajudar a mudar o jogo nesse complexo tabuleiro que é a produção cultural brasileira.
Uma breve história da gestão pública do início do século
A gestão de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura, entre 2003 e 2008, durante o primeiro e metade do segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, é um marco na política cultural pública brasileira. Gil inaugurou os anos 2000 olhando para o interior do país, para as transformações tecnológicas e para as manifestações populares. Conseguiu atrair investimentos e movimentou a pasta como nenhum outro até então havia feito.
Seu sucessor Juca Ferreira, ainda no governo Lula, reafirma o trabalho de Gil e aumenta o diálogo com agentes culturais de todo país. A CNIC, sob o comando de Henilton Menezes, passa a realizar suas reuniões em cidades espalhadas por todo país, permitindo com que seus membros conhecessem outras realidades e os mais diversos equipamentos culturais públicos e privados espalhados por todo país.
O setor parecia viver um clima de euforia até que, no governo de Dilma Rousseff (que esteve no poder de 2011 a 2016), Ana de Hollanda assumiu a pasta e foi imediatamente desaprovada por grande parte do setor. Sua curta gestão, de um ano e nove meses, foi marcada por polêmicas como a retirada do selo Creative Commons do site do Ministério da Cultura, o afastamento do diretor Marcos Souza e o baixo orçamento destinado à pasta. Marta Suplicy assume em meio à turbulência e fica dois anos no cargo, quando pede demissão do cargo (sendo a primeira ministra a deixar o governo). Marta esteve à frente do Ministério durante as jornadas de junho e sua pasta não passou incólume pelas reivindicações das ruas. O levante popular de alcance nacional, inicialmente representando anseios de estudantes, teve consequências duradouras. Marta foi substituída interinamente por Ana Cristina Wanzeler até que Dilma Rousseff nomeasse novamente o ex-ministro Juca Ferreira para a pasta.
Em meio a uma crise política sem precedentes e com o orçamento da pasta reduzido, Juca Ferreira enfrentou com dignidade seu segundo mandato até o impeachment da presidente.
O novo presidente do país, Michel Temer (no poder de 2016 a 2018), assume e promete acabar com o Ministério da Cultura, apontando o desmonte que estava por vir. Cede, pois, à grita do setor e mantém a pasta sob o comando de Marcelo Calero. A maioria dos agentes culturais do país se levanta contra o governo golpista e em poucos meses Calero deixa o cargo e é substituído por Roberto Freire, que também não fica mais que poucos meses no governo. João Batista de Andrade assume interinamente e fica no cargo por três meses até a nomeação de Sérgio Sá Leitão, que assume a pasta até o fim do mandato de Temer. Sérgio Sá Leitão fora criado politicamente sob a luz da gestão de Gilberto Gil. Defensor da Lei Rouanet e gestor elogiado, tentou dar alguma dignidade à pasta mesmo com um dos piores orçamentos da história.
Os anos de trevas
Jair Messias Bolsonaro (presidente entre os anos de 2019 e 2022) representou a pá de cal na política pública cultural do país. Averso à cultura e qualquer forma de manifestação artística (popular ou erudita), extingue o Ministério da Cultura e o reduz a uma pasta vinculada ao Ministério da Cidadania. Se politicamente a cultura sofria seu grande baque no país, a pandemia do coronavírus (Covid-19) soterrou qualquer possibilidade de reaquecimento do setor. Não adiantava somente lutar contra o governo. A quarentena se impunha como uma realidade nefasta e a economia criativa foi a que mais sofreu nos anos seguintes. Quatro duros anos de vidas perdidas, precarização do trabalho, equipamentos culturais fechados e criadores e produtores passando dificuldades financeiras. Não fossem as emergenciais leis Aldir Blanc (2020) e Paulo Gustavo (2022), 2,1 milhões de pessoas trabalhando diretamente no setor cultural estariam completamente desamparadas.
No obrigatório “Guia Brasileiro de Produção Cultural”, de 2022, organizado por Cristiane Olivieri e Edson Natale, há logo no início um belo texto de Raissa Oliveira, mulher preta, antropóloga e educadora, cujo trecho destaco aqui:
Na pandemia, disseminada em 2020, a gente ficou sem a rua, e a rua sem a gente. Percorrer os territórios que compõem a nossa caminhada, denominada Volta Negra, me coloca para jogo em contato com as diversas realidades comuns ao centro de uma megacidade: pessoas em situação de rua, feiras e eventos culturais, lugares e pessoas que não aceitavam pessoas negras no espaço do centro, a não ser para servir. Caminhar aos sábados falando de herança negra em São Paulo é uma afronta ao sistema colonial vigente, é produzir e devolver uma narrativa que não a oficial para esses lugares.
Nesse período, segundo estatísticas, a violência doméstica contra mulheres aumentou significativamente no Brasil. A terceira edição do relatório “Visível e Invisível: A vitimização das mulheres no Brasil” (2021), elaborado pelo Fórum de Segurança Pública em parceria com o Datafolha, conclui:
“A aparente redução da violência contra a mulher representada pela queda nos registros policiais tradicionais era confrontada, portanto, com o aumento da violência letal e das chamadas em canais oficiais de ajuda. Isso fez com que se indicasse que, embora a violência letal estivesse crescendo no período, as mulheres estavam encontrando mais dificuldades para realizar denúncias do que em períodos anteriores, provavelmente por dois motivos: em função do maior convívio junto ao agressor e da consequente ampliação da manipulação física e psicológica sobre a vítima; e das dificuldades de deslocamento e acesso a instituições e redes de proteção, que no período passavam por instabilidades, como diminuição do número de servidores, horários de atendimento reduzidos e aumento das demandas, bem como pelas restrições de mobilidade” (2021, p. 8).
Se em tempos ditos normais mulheres e negros já sofriam abusos e traumas, o período pandêmico, que nos impôs isolamento social, somado a um governo cujos discursos e ações eram misóginos e racistas, provocou aumento da violência contra mulheres e negros. Além, obviamente, da violência contra indígenas e contra a comunidade LGBTQIA+.
Lufada de ar
O ano de 2023 se inicia com a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a chegada da primeira mulher negra à frente do Ministério da Cultura: Margareth Menezes. Negra e nordestina, a ministra promete retomar políticas públicas relevantes, ampliar o orçamento da pasta e voltar a olhar para o interior do país.
A cadeia produtiva
Segundo o magnífico Sistema de Informações e Indicadores Culturais – SIIC, do IBGE, publicado em 2023, “em 2021, 387,6 mil organizações atuavam nas atividades culturais, as quais ocupavam 2,1 milhões de pessoas em 31 de dezembro, sendo 75,7% assalariadas (1,6 milhão), com um total de salários pagos no ano de R$ 83,3 bilhões, resultando em um salário médio mensal de R$ 4 135 (26,6% acima da média do Cempre). As organizações culturais corresponderam a 6,7% do total que constituía o universo do Cempre e em termos de pessoal ocupado, 3,9%. Em uma década, o setor cultural perdeu participação no total da economia em todas as variáveis analisadas. Na comparação com 2011, houve um acréscimo de 3,1% no número de organizações, enquanto o total de organizações no período cresceu 12,1%, o que contribuiu para que as atividades culturais saíssem de 7,3% de participação para 6,7%. Nas demais variáveis, apesar de uma variação relativa positiva, também houve perda. Enquanto em 2011 o total de salários pagos pelo setor cultural representava 4,4% do total, 10 anos depois, passaram a receber 4,2%. A análise segundo os domínios culturais mostra que a maioria das organizações fazem parte das atividades culturais centrais, enquanto as atividades culturais periféricas ocupavam a maioria dos assalariados em 2021. Atividades centrais apresentaram 66,3% das empresas e 48,1% dos assalariados, e as atividades periféricas representaram 33,7% e 51,9% do total, respectivamente. Cabe destacar que as empresas atuantes no domínio das atividades centrais foram as que mais contribuíram para o aumento de 3,1%, em uma década, no número de organizações culturais, com ganho de 24,3 mil empresas. Esse aumento foi bastante heterogêneo, tendo o domínio Design e serviços criativos apresentado um aumento de 53,8 mil unidades; Mídias audiovisuais e interativas 11,8 mil unidades; e Educação e capacitação de 2,2 mil. As demais atividades do domínio das atividades centrais apresentaram queda, sendo a maior delas observada em Livro e imprensa, 25,7 mil. Com isso, Design e serviços criativos tornou-se o domínio que mais concentrava empresas e outras organizações nas atividades centrais (36,5%). Por outro lado, nas atividades periféricas, a queda foi de 12,5 mil unidades”.
Este retrato estatístico nos dá uma boa ideia de como anda o setor. O mesmo estudo traz outras informações importantes, como a proporção de gastos por esfera administrativa: 0,03% na esfera federal, 0,34% na esfera estadual e 0,81% na esfera municipal (dados de 2022). Ou seja, a verba pública destinada ao setor cultural é irrisória.
Por que (e como) isso nos afeta?
A introdução ao relatório de 2020 da UNESCO é taxativa:
Por meio do patrimônio e das indústrias criativas e culturais, podemos entender, de forma bem clara, que o status da mulher na sociedade – politicamente, legalmente, socialmente, economicamente – foi fundamentalmente reduzido no mundo inteiro ao longo de grande parte da história humana. Há uma necessidade de determinar até onde todo o processo de identificação, interpretação, conservação/salvaguarda e gestão do patrimônio cultural é inclusivo e participativo. Os papéis de mulheres e homens, desenvolvidos e moldados ao longo de nossas histórias, também têm impacto sobre a capacidade e até onde mulheres e homens conseguem acessar, participar e contribuir para a cultura.
Em um artigo publicado na revista “Conexões”, da Universidade Caxias do Sul, Gabriela Valer Picancio, Rafael José dos Santos e Silvana Boone lançam seus olhares e reflexões para a presença de mulheres negras nas artes brasileiras sob duas perspectivas: “como agente criadora de imagens e textos; e como figura passiva, representada de modo estereotipado”.
O artigo é um belo ponto de partida para a discussão que aqui se inicia. Os autores demonstram com profundidade que a imagem da mulher, especialmente a mulher negra, é sempre carregada de estereótipos quando retratada por um homem. Essa construção só cai por terra quando elas se fazem autoras e ecoam suas realidades, anseios, paixões, crenças e valores.
“Nas artes brasileiras, a mulher, em especial a negra, teve sua representação diretamente condicionada pela situação social do País, acompanhando suas modificações estruturais e simbólicas, da situação de colônia à emancipação política, do retrato feito pelo artista/escritor estrangeiro à autonomia e propriedade de discurso de criadores locais. As imagens seguiram interesses políticos governamentais e dos próprios artistas, primeiramente vendo na mulher uma fonte de figuração da imagem do território ainda desconhecido, depois, com o Romantismo, na personagem estereotipada da índia ou das brancas submissas. Com o advento do Realismo, as negras e, principalmente, as mestiças entram em cena como degeneradas. Entrando no século XX, principalmente a partir dos anos 1930, são transformadas em ícones de uma identidade construída como ideologia nacional e, simultaneamente, como imagem do Brasil a ser vendida ao Exterior”.
Nossa história é contada a partir de uma perspectiva masculina e europeia. Com raras exceções, mesmo nossos criadores negros e mestiços têm um olhar turvo quando retratam uma mulher. Mais turvo ainda quando se trata de uma mulher negra.
Questões de gênero e raça
O produtor cultural é figura central na agenda cultural de um país. Há enorme responsabilidade com o que é produzido e como isso chega ao público – sem contar nas contrapartidas sociais, acessibilidade, precificação do produto final e objetivos do projeto. De forma direta, o produtor cultural atua como catalisador da criação artística.
A partir de sua importância direta e das questões objetivas e subjetivas que envolvem o desenvolvimento de um projeto cultural desde sua concepção até sua realização, o produtor não pode se afastar dos enfrentamentos cotidianos, da fricção entre mercado e arte e das transformações sociais. Seu trabalho deve ter como norte a convicção de que seus compromissos vão muito além da mera realização competente do projeto cultural. Há sempre o dever social e artístico em primeiro plano.
Então, pergunto, como escancarar o imenso abismo se não tratarmos de gênero e raça em nossas produções, a não ser que o protagonismo seja assumido por mulheres negras? Que outra saída há para nos livrarmos do olhar do “macho adulto branco sempre no comando”?
No já citado “Guia Brsileiro de Produção Cultural”, há uma bela entrevista com Danilo dos Santos de Miranda, um dos principais gestores culturais do país, diretor do Sesc São Paulo. Infelizmente, Danilo falecera em 2023, um ano após a publicação do Guia. Aqui um trecho muito significativo do olhar de um grande gestor cultural:
Vamos ter muita trovoada, muita tempestade pela frente ainda. Acertar essa economia não será fácil, e já é chavão dizer que o Brasil tem o maior problema de desigualdade possível e imaginária, e é verdade. Esse é um problema gravíssimo, e a nossa desigualdade não é simples, pois não é baseada apenas em questões econômicas, geográficas ou climáticas. Ela tem um componente estrutural, que é do pensamento, da reflexão. Por exemplo: entendo que a questão racial é a grande detonadora de todas as demais questões! Nós fomos o país mais escravagista do mundo na era moderna. O racismo está embutido em nossos hábitos e costumes, mesmo nas pessoas mais progressistas Nós temos no Sesc ações voltadas às questões raciais, de diversidade, com discussões e debates com vários convidados: mas, internamente, quantos gerentes negros temos? Quantas pessoas negras temos em posição de liderança? Isso incomoda e me bota um interrogation mark na cabeça. Temos que trabalhar muito e estamos em campo para isso! Temos que lutar nas instituições culturais, na universidade, nas empresas, na administração pública, nos organismos mais variados, nas ONGs, nas famílias. Um Brasil novo significa um Brasil mais igualitário, pelo qual brigaremos e iremos atrás. É a minha principal luta, minha grande preocupação é deixar uma proposta de caminho.
Termos mulheres em áreas de gestão e comando, assim como protagonizando as áreas criativas, não resolve totalmente o problema. Obviamente, o olhar feminino sobre o corpo de outra mulher é deveras diferente do olhar masculino. Mas as mulheres negras precisam ter maior participação nas áreas estratégicas. É mister que suas questões sejam levantadas por elas mesmas. Há que se ter um novo olhar dentro da produção cultural brasileira, não apenas feminista, mas decolonial.
Em seu livro “Um Feminismo Decolonial”, Françoise Vergès toca num ponto sensível:
Os movimentos feministas de política decolonial, junto a outros movimentos decoloniais e a todos os movimentos de emancipação, enfrentam um momento de aceleração do capitalismo que atualmente regula o funcionamento das democracias. Eles devem encontrar alternativas ao absolutismo econômico e à fabricação infinita de mercadorias. Nossas lutas constituem uma ameaça aos regimes autoritários que acompanham o absolutismo econômico do capitalismo. Elas ameaçam também a dominação masculina, assustada por ser obrigada a renunciar a seu poder e que, por todo lugar, mostra sua proximidade com as forças fascistas. Elas desestabilizam igualmente o feminismo civilizatório que, ao transformar os direitos das mulheres em uma ideologia de assimilação e de integração à ordem neoliberal, reduz as aspirações revolucionárias das mulheres à demanda por divisão igualitária dos privilégios concedidos aos homens brancos em razão da supremacia racial branca. Cúmplices ativas da ordem capitalista racial, as feministas civilizatórias não hesitam em apoiar políticas de intervenção imperialistas, políticas islamofóbicas ou negrofóbicas.
Ou, como exemplificam os autores do texto “Do Animal Imoral À Total Invisibilidade: A Representação Da Mulher Negra Nas Artes Visuais E Na Literatura Brasileiras”:
Um dos quadros que mais chamou a atenção no início do século XX, a respeito da problemática é a pintura A Negra, de Tarsila do Amaral. Realizada em 1923, a pintura não somente tornou-se fundamental para o entendimento das influências vanguardistas na arte brasileira, como também para a observação da representação da mulher nesse período. Tarsila simplifica a figura e o fundo, aproximando-os, deixando a cargo do observador a criação de profundidade. A horizontalidade é rompida pela presença da negra verticalmente posta e por uma folha de bananeira na transversal. Como se dois elementos completamente brasileiros fossem colocados em um cenário cubista. A figura da mulher não é exposta de forma envolvente, mas demasiadamente destacada.
A Negra de Tarsila é o símbolo do lugar ambíguo no qual a mulher negra é posta, entre o sexo e a identidade nacionalista.
Vemos, pois, que quando se trata da mulher negra, os olhares sempre são estigmatizantes. Mesmo quando vêm de outras mulheres.
Por esses motivos, não basta que sejamos feministas em nossos propósitos. É preciso que nosso feminismo seja decolonial, é preciso que ele acolha e dê voz às mulheres negras. E que a luta contra o patriarcado e a misoginia seja carregada de ações anti racistas.
A condição da mulher
Carolina Lima, em matéria para o Observatório da Diversidade Cultural, colhe dados importantes à nossa discussão. Diz ela, citando as fontes:
No final de 2022, o Observatório Itaú Cultural divulgou o estudo Economia Criativa 3º trimestre de 2022 – análise do mercado de trabalho da economia criativa e notas sobre a questão racial na economia criativa. Nesta análise, os dados apontaram que em relação ao perfil dos trabalhadores da Economia Criativa (área que engloba o setor da cultura, bem como comunicação, moda, design e artesanato) “destaca-se uma maior participação masculina (55% de homens, contra 45% de mulheres)”. Os dados demonstraram que 58% dos trabalhadores são brancos, 32% pardos, 8% pretos e 2% demais grupos (amarelos e indígenas),” sendo que há uma discrepância na remuneração média no setor em relação a gênero e raça, uma vez que as mulheres pretas ganham cerca de 70% a menos que homens brancos. Em valores reais, mulheres pretas e pardas recebem por volta de R$1.800,00 e homens pretos R$2.200,00. Já as mulheres brancas recebem cerca de R$2.900,00, enquanto homens brancos recebem em média R$3.800,00.
O estudo Igualdade de gênero, patrimônio e criatividade, originalmente lançado pela UNESCO em 2014, e disponibilizado em português em 2021, apresenta a desigualdade vivenciada pelas mulheres nos setores de patrimônio cultural e criatividade. Os anos que separam a publicação original dos dias de hoje não pôs fim a desigualdade existente, uma vez que novos desafios surgiram ao longo do tempo. Conforme coloca Ernesto Ottone R. (Diretor-geral adjunto de Cultura da UNESCO) no prefácio da publicação, “a crise da COVID-19 reverteu os avanços alcançados, uma vez que as mulheres vivenciam uma distribuição desigual do trabalho doméstico e sofrem com a falta de redes de segurança diante de uma crise sem precedentes.” Segundo Ottone R., “à medida que os processos de criação, produção, distribuição e consumo de bens e serviços culturais são transferidos para o ambiente online, a gritante disparidade de acesso digital existente entre homens e mulheres dificulta a realização dos direitos de participação na vida cultural e aos meios de subsistência sustentáveis das trabalhadoras da indústria.”
Para corroborar com as pesquisas elencadas acima, destaco mais um trecho do Sistema de Informações e Indicadores Culturais – SIIC, do IBGE, publicado em 2023:
Em 2012, a distribuição entre homens e mulheres no total dos domínios culturais foi bastante semelhante ao total do Cempre: mulheres assalariadas ocupando 43,7% no setor cultural e 44,9% no Cempre. Porém, segundo as atividades, as três em que as mulheres mais predominaram foram Educação e capacitação (68,2%), Artes visuais e artesanatos (64,5%) e Livro e imprensa (53,1%). Já os homens estiveram mais presentes nas atividades de Mídias audiovisuais e interativas (62,4%), Equipamentos e materiais de apoio (61,8%) e Apresentações artísticas e celebrações (56,7%). No geral, as mulheres ganharam menos do que os homens. Enquanto eles receberam, em média, R$4.730,37 ao mês, elas, R$3.354,00. Apenas em duas atividades elas ganharam o equivalente ou um pouco acima: Patrimônio natural e cultural e Apresentações artísticas e celebrações.
Ou seja, a realidade é que as mulheres são exploradas. E as mulheres negras mais ainda. A museóloga Karina Muniz Viana, em depoimento emocionado para este artigo, diz que não há políticas públicas suficientes para mulheres empreendedoras no mundo das artes: “Principalmente no campo da liberação de crédito. Empreender não é apenas ficar presa ao circuito de editais públicos e privados da Arte e da Cultura. As instituições financeiras precisam olhar para nós como empresárias, com direito a fluxo rotativo, capital de investimento, fundos de investimento e linhas de crédito”.
Como se nota, o enfrentamento feminino é constante. Sempre há um degrau a ser alcançado.
Considerações finais
O produtor cultural brasileiro da década de 2020, a década do desencanto, precisa antes de mais nada assumir um compromisso com o feminismo decolonial. Precisa estar atento às transformações do mundo, às questões ambientais, aos anseios e direitos dos povos originários e se conectar com a realidade periférica de um país de proporções continentais e de desigualdades sócio-econômicas abissais.
Não basta somente lutarmos para o aumento das verbas públicas de incentivo à cultura. Não basta sonhar, criar, planejar, realizar e entregar um projeto perfeito. Não basta lutar contra a má remuneração de músicos, atores, artistas plásticos, dançarinos e escritores. Não basta se engajar nas discussões de direitos autorais e contrapartidas sociais. Não basta ser politicamente correto.
Não basta que suas produções versem sobre temas da moda. É preciso que estejam genuinamente imbuídos de ações afirmativas desde sua origem. É preciso que tenhamos mais mulheres, brancas e negras e mestiças e indígenas, à frente dessas produções. Só assim, daremos um passo à frente. Só assim, conseguiremos romper com as amarras de séculos de patriarcado e de desonrosa tradição escravocrata.
No século que se apresenta, a cultura deve seguir sendo o gume afiado que nos separa da mediocridade. A arte deve seguir incomodando e propondo reflexões e saídas. E é obrigação do produtor cultural fazer com que isso se dê por inteiro.
Referências
BERTH, Joyce. EMPODERAMENTO. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019 (Feminismos Plurais / coordenação Djamila Ribeiro).
BOONE, Silvana; PICANCIO, Gabriela Valer; SANTOS, Rafael José dos. DO ANIMAL IMORAL À TOTAL INVISIBILIDADE: A REPRESENTAÇÃO DA MULHER NEGRA NAS ARTES VISUAIS E NA LITERATURA BRASILEIRAS. Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul – v. 18, n. 35, jan./jun. 2019, p. 99-117
Catálogo de Políticas Públicas. IPEA, 2022. Disponível em: https://catalogo.ipea.gov.br/
IGUALDADE DE GÊNERO, PATRIMÔNIO E CRIATIVIDADE. Unesco, 2015. Disponível em: https://www.unesco.org/culture/Gender-Equality-and-Culture/flipbook/es/mobile/index.html#p=1
LIMA, Carolina. MULHERES, CULTURA E DISPARIDADE DE GÊNERO. In: Observatório da Diversidade Cultural, 2023. Disponível em: https://observatoriodadiversidade.org.br/noticias/8m2023/
MIRANDA, Danilo dos Santos de. Curta linguagem: entrevista com Danilo Santos de Miranda. in: GUIA BRASILEIRO DE PRODUÇÃO CULTURAL, AÇÕES E REFLEXÕES. Organização Cristiane Olivieri e Edson Natale – São Paulo; Edições Sesc São Paulo, 2022.
OLIVEIRA, Raissa de. Ao lado da luta o encantamento. In: GUIA BRASILEIRO DE PRODUÇÃO CULTURAL, AÇÕES E REFLEXÕES. Organização Cristiane Olivieri e Edson Natale – São Paulo; Edições Sesc São Paulo, 2022.
PONTE, Beth. EQUIDADE DE GÊNERO NO SETOR CULTURAL. Medium, 2021. Disponível em: https://pontebeth.medium.com/equidade-de-g%C3%AAnero-no-setor-cultural-ae1e9c2f6003
SISTEMA DE INFORMAÇÕES E INDICADORES CULTURAIS 2011-2022, IBGE. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102053_informativo.pdf
VERGÈS, Françoise. UM FEMINISMO DECOLONIAL. Tradução de Jamille Pinheiro e Raquel Camargo. Ubu Editora, 2020.