MEIGO ENERGÚMENO

Notas para uma leitura antimachista de Vinicius de Moraes

Luca Argel
Editora Urutau, 2025
Capítulos 1 e 2

Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
SAMBA DA BÊNÇÃO

No dia 25 de novembro de 2013, ocasião do “Dia internacional de combate à violência contra a mulher”, foram publicados os resultados de uma pesquisa feita no Brasil intitulada Percepções dos homens sobre a violência doméstica contra a mulher. Dentre os resultados da pesquisa, há um que chama a atenção. Dos homens entrevistados, 16% admitiram ter cometido alguma violência com a atual ou ex-companheira. Porém, quando são qualificadas algumas atitudes, como xingar, empurrar ou ameaçar, o número sobe para 56%. A conclusão dos pesquisadores foi a de que “a incidência aumenta quando são listadas as atitudes que configuram violência doméstica, sem que sejam nomeadas dessa forma”. Quase dez anos depois, em 2022, uma outra pesquisa, desta vez entrevistando tanto homens quanto mulheres, apontou mais um resultado curioso: metade dos entrevistados disse conhecer pelo menos uma mulher que já foi agredida pelo atual ou ex-companheiro. Porém, mais de 94% dos homens afirmaram nunca ter agredido uma companheira.

Em ambos os casos, seja através da omissão ou da desqualificação das atitudes, somos levados a refletir sobre o quanto o uso arbitrário da linguagem pode servir, na prática, para mascarar, e com isso perpetuar, relações de poder violentamente desiguais e opressoras. Além disso, eles nos fazem pensar na lógica das relações sociais que sustenta esse tipo de comportamento, bem como nos dispositivos ideológicos que servem não só para acobertar, mas para justificar e até legitimar essas atitudes.

Sabemos que a violência física contra a mulher tem relação direta com as violências que são o patriarcado, os estereótipos de gênero, a promoção de certas formas de «relação amorosa» que de amor não têm nada, mas as perguntas que ficam são: onde aprendemos a nos relacionar assim? Quem nos ensina esses estereótipos? Como esses modelos chegaram até nós?

Talvez uma incursão pelo universo poético de Vinicius de Moraes nos dê alguma pista. Afinal, como bem diz Eucanaã Ferraz, a sua obra “é um longo aprendizado do amor”.

Ai de mim! que farei sem o meu homem, sem o meu esposo
Que rios não me levarão de esterilidade e de tristeza?
Mulher, para onde caminharei senão para a sombra
Se tu, oh meu companheiro, não me fecundares
E não esparzires do teu grão a terra pálida dos lírios?...

Se, como diz José Castelo na biografia do poeta, a paixão é o grande tema da obra de Vinicius, não seria exagero supor que a personagem principal desta é a mulher. Espreitando atrás de cada verso, às vezes mais visível, às vezes menos, está sempre a sombra da amada, um ser cuja onipresença é inversamente proporcional ao seu poder de voz. Confesso que, após uma revisão exaustiva da obra de Vinicius, o Soneto de carta e mensagem, parcialmente reproduzido acima, foi uma das raríssimas ocorrências encontradas em que a amada toma para si o papel de locutor.

Infelizmente, o resultado parece não refletir uma visão menos passiva da figura feminina do que aquela que é normalmente encontrada ao longo da generalidade dos livros e canções de Vinicius. Antes, o eu lírico desse poema parece estar se submetendo a um processo de auto objetificação, no qual a sua própria existência se encontra condicionada e subordinada à existência daquele a que chama de “meu homem”.

Pode-se argumentar que esse poema, datado de 1938, não é tão representativo do estilo poético que notabilizou Vinicius, pois pertence a uma fase em que o poeta ainda estava se libertando do misticismo que marcou seus primeiros livros; e que usá-lo como exemplo poderia nos levar a uma interpretação defasada do que seria a representação da mulher nos livros mais importantes do poeta. No entanto, ao olhar em perspectiva a sua produção, noto que as transformações pelas quais o seu estilo passou ao longo dos anos, embora sem dúvida possuam implicações éticas importantes, não parecem ter sido acompanhadas por uma mudança significativa em matéria de paradigma ideológico – ao menos no que diz respeito à representação feminina. Vejamos outro exemplo:

Você que só faz usufruir
E tem mulher pra usar ou pra exibir
Você vai ver um dia
Em que toca você foi bulir!
A mulher foi feita
Pro amor e pro perdão
Cai nessa não, cai nessa não

Trata-se da canção Testamento, da última fase da carreira do poeta (marcada pela parceria com Toquinho). Nessa aqui, apesar dos primeiros versos do trecho transcrito parecerem apontar para uma visão desobjetificante da mulher, logo voltamos ao mesmo pensamento encontrado em Soneto de carta e mensagem, no Samba da bênção (também parcialmente transcrito acima), e em tantos outros poemas e canções: que à mulher cabe o papel no mundo de ser a amante incondicional dos homens. E ponto final.

Não raro, essa ideia aparece disfarçada, envolvida por uma ternura que, apesar de sincera, é sempre perniciosamente paternalista, e tende à manutenção da mulher num “estado de perpétua infantilização”, como fica claro na crônica de Vinicius O amor que move o sol e outras estrelas: “Soube que o amor é uma missão a cumprir por nós, homens, e que é a de constantemente querer, zelar e defender essas que, tão frágeis, fazem a nossa força e miséria e cuja existência é um contínuo sofrer, se alegrar e se extinguir por nós.”

Há vezes, porém, em que esta visão aparece de forma menos terna. É o caso desta outra crônica, Do amor aos bichos:

Mas olhai uma galinha qualquer ciscando num campo, ou em seu galinheiro: que feminilidade autêntica, que espírito prático e, sobretudo, que saúde moral! Eis ali um bicho que, na realidade, ama o seu clã; vive com um fundo sentimento de permanência […]; e reluta pouco nas coisas do amor físico. Soubessem as mulheres imitá-las e estou certo viveriam bem mais felizes.

§

Mas e se a mulher se recusar a exercer esse papel? Um exemplo cuja assustadora violência simbólica costuma passar despercebida é a canção Formosa, parceria de Vinicius e Baden Powell. Trata-se de um eu lírico (masculino) que se dirige a uma interlocutora (a Formosa) exprimindo seu descontentamento por ela lhe ter negado carinhos, ou rejeitado os que ele lhe oferecia. O problema é que esse tom queixoso atinge um nível de agressividade que só é justificável se aceitarmos a premissa de que a mulher tem de, por obrigação, atender aos desejos do homem que a ama (e nem sabemos, nesse caso, se a recíproca era verdadeira). Seguem-se acusações e chantagens. Diz-se que a mulher “tem uma coisa de menos no coração”, que “mulher que nega, nega o que não é para negar”, e há até uma ameaça velada de que ela nunca será feliz se continuar assim, pois “ninguém tem nada de bom sem sofrer” — onde inferimos que o eu lírico tem plena consciência de que está fazendo, ou irá fazer, a mulher sofrer, e ainda assim continua a insistir.

Pensar sobre essa música me faz lembrar de uma passagem das Novas Cartas Portuguesas, em que esse mesmo tema também é abordado, mas do ponto de vista da mulher.

Logo tingimos qualquer recusa de suspeita de feitio azedo, de puritanismo ou frigidez, e muito nos apoiamos nas consequências dessa recusa – solidão, aridez, frustração – para com elas retecermos o início do ciclo, a culpa da mulher que fica só, e se não tens homem logo és puritana ou frígida e logo ficaste frustrada – e porque te suponho virgem? – e homem que rejeita mulher tem uma certa aura de superioridade imbecil mas desdenhosa, aceitamos que rejeita o conhecido, o exercício do seu sexo sobre outro, seu sexo sempre conhecido – e ninguém o suporá virgem ainda que o seja – sempre visível e acabado, mas a mulher que rejeita homem parece-nos sempre inferior e ignorante, furtando-se ao conhecimento de seu sexo, que lhe seria desvendado, moldado e ensinado pelo homem, fugindo ao poder do macho como um adversário previamente vencido, esquivando-se à derrota inevitável que, no fundo, todos consideramos natural.

Para além da violência coerciva mais imediata, podemos ainda dizer que o ponto de vista que legitima o discurso masculino presente numa canção como Formosa é aquele que também sustenta e justifica qualquer episódio de submissão do livre arbítrio da mulher à realização de expectativas sociais arbitrariamente impostas, raiz do preconceito e da discriminação a mulheres que se recusam a cumprir tais expectativas (tanto no campo das relações afetivas/conjugais, como também com a família, amigos e no ambiente de trabalho), mas que nem por isso deixam de sentir o seu enorme peso em cada tomada de decisão que vá minimamente contra o “caminho natural de toda mulher”. A maternidade, por exemplo.

É o caso da cristalização dos mitos sobre a naturalidade da relação entre a mulher e a maternidade, sedimentada ao longo dos tempos, que trouxe como consequência a rejeição de todas as mulheres que se recusavam a ser mães, e cuja atitude era classificada como contra natura, aberrante e mesmo patológica. (Novas Cartas Portuguesas)

O que vemos na poesia de Vinicius, em geral, parece-me ser a anuência a um processo de estreitamento do papel social da mulher, confinando-a ao espaço conjugal. Desse modo, inibindo a sua expansão e plena realização de suas potencialidades individuais – ou, melhor dizendo, de sua própria liberdade – seja pelo reforço explícito de papéis pré-determinados pelo patriarcado, seja pela simples omissão de outras possíveis atividades e posições na sociedade.

O poema Carta do ausente oferece um bom exemplo a esse respeito. Retrata a situação de um eu lírico masculino (a figura do próprio autor) que está ausente devido à obrigação de uma longa viagem de trabalho (as circunstâncias biográficas em volta desse poema podem ser facilmente investigadas, mas não vêm ao caso aqui) e fica, portanto, afastado da sua companheira, que permanece em casa. Qualquer semelhança com a história de Ulisses e Penélope não será mera coincidência. Basta pensarmos que esse é, sabidamente, um dos tantos episódios da mitologia clássica e da épica homérica que sustentam e ilustram, dentre outras coisas, os modelos para os papéis de gênero adotados por nossa sociedade patriarcal ocidental. O homem, Ulisses, “guerreiro jovem, valente, inteligente, diplomata” (outra coincidência!) destinado às aventuras e à vida na vastidão do mundo; enquanto à mulher, Penélope, “imputa-se o símbolo da fidelidade conjugal pela espera do marido”. A lição de fundo é a de que o espaço público e político é do domínio do homem, enquanto, inversamente, a esfera doméstica é do domínio da mulher. Presente de Homero a Fernando Pessoa (“quantas mães choraram […], quantas noivas ficaram por casar, para que fosses nosso, ó mar!”), esse paradigma também aparece no poema de Vinicius:

Meus amigos, se durante o meu recesso virem por acaso passar a minha amada
Peçam silêncio geral. Depois
Apontem para o infinito. Ela deve ir
Como uma sonâmbula, envolta numa aura
De tristeza, pois seus olhos
Só verão a minha ausência. Ela deve
Estar cega a tudo o que não seja o meu amor [...]
Procedam com discrição mas eficiência: que ela
Não sinta o seu caminho, e que este, ademais
Ofereça a maior segurança. Seria sem dúvida de grande acerto
Não se locomovesse ela de todo [...]
Sim, seria extremamente preferível
Se mantivesse ela reclusa em andar térreo e intramuros
Num ambiente azul de paz e música. [...]

Quem já leu a poesia de Vinicius sabe que essa posição de dependência existencial (que não é mútua nem simétrica, ao contrário do que o poema sugere, e conforme tentarei demonstrar mais adiante) e a restrição do horizonte de possibilidades de realização da mulher são geralmente propostas de modo muito sutil e terno, sempre sob o nobilíssimo pretexto do grande amor. A ideia de submeter uma mulher a condições de violação de liberdades básicas é uma prática recorrente na história da violência contra a mulher e uma das principais prerrogativas do homem no exercício de seus privilégios dentro de uma sociedade institucionalmente machista. E o amor, recordemos, é uma bandeira usada muito frequentemente para tentar justificar essa violação. O caso de Vinicius pode parecer inofensivo, mas está apenas situado no lado menos grave de um espectro que, no outro extremo, chega a admitir conceitos como o de crime passional, uma tipificação penal que, ao aceitar a paixão como motivação legítima para a agressão, acabou por servir durante séculos como um dispositivo jurídico de proteção ao homem agressor em casos de violência doméstica e familiar, violência sexual, e mesmo assassinato. Hoje em dia a designação crime passional já é considerada absolutamente anacrônica e, nesse sentido, a sua superação nos leva a uma das grandes reivindicações do feminismo: a tipificação penal do feminicídio — já conquistada no Brasil em 2015, mas ainda por conquistar em Portugal. Graças ao trabalho de movimentos de defesa dos direitos das mulheres, já há um entendimento mais amplo de que “amor não mata; o machismo, sim”. E ao contrário do que o poema de Vinicius parece sugerir, o amor tampouco aprisiona. O que aprisiona é o sentimento de poder (ou posse) que um homem acredita ter sobre a mulher; sentimento que não deveria continuar a ser reforçado.

Luca Argel gentilmente cedeu os dois primeiros capítulos de seu livro Meio Energúmeno – Notas para uma leitura antimachista de Vinícius de Moraes para esta edição da Uma Canção. No texto que se segue, o autor oferece uma análise crítica da obra de Vinicius de Moraes, questionando a representação da mulher e apontando para a necessidade de desconstruir estereótipos. Os editores sugerem que os leitores adquiram o livro para se aprofundarem na discussão lançada aqui.